Rachel Zegler e a pobre revolução da bondade.
Rachel Zegler e a pobre revolução da bondade.D.R.

“Espelho meu, espelho meu...” Branca de Neve e o reflexo da sobrevivência

É provável que fique para a história como um dos mais embaraçosos remakes da Disney, depois de já ter corrido muita tinta sobre os seus casos e casinhos.Para quando o regresso à fantasia sem agendas?
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Por onde começar? Talvez o melhor seja seguir a cronologia dos acontecimentos: primeiro foi a polémica com a escolha de Rachel Zegler (atriz do último West Side Story) para o papel de Branca de Neve, cuja ascendência colombiana contraria a lógica da cor de pele alva dessa personagem titular. Estávamos em junho de 2021. Depois, em janeiro de 2022, foi a vez do ator Peter Dinklage pegar no exemplo de tal escolha progressista para criticar, em defesa da sua comunidade, a falta de progresso em torno da representação dos anões. Em julho de 2023, vieram a público fotos da rodagem que mostravam um ator anão e outros seis, de estatura normal, naquilo que parecia ser mais um sinal de mudança, no cumprimento de quotas de representatividade - avolumou-se aí a controvérsia que começara com Zegler. Já em outubro de 2023, outra imagem revelava que, afinal, os anões seriam personagens animadas com técnica CGI (imagens geradas por computador). E, qual cereja no topo do bolo, em agosto de 2024, Zegler e Gal Gadot (a intérprete da rainha maléfica), envolveram-se numa tensão virtual espelhada em discordantes visões políticas, com a primeira a manifestar-se pró-Palestina e a segunda, enquanto israelita de berço, a manter o apoio a Israel na guerra em Gaza.

Indissociável da vertigem destes casos espalhados ao longo de cinco anos, Branca de Neve surge agora no grande ecrã com os despojos do infortúnio acumulado, dir-se-ia, incapaz de superar os seus próprios fantasmas e renascer das cinzas... O conto, saído da pena dos irmãos Grimm, sobre uma rainha má que manda matar a enteada, por ser a mais bela das redondezas - e sobre essa doce jovem acolhida na floresta pelos sete anões - não mudou muito na essência, mas a insipidez da recriação é difícil de passar despercebida; mesmo que se tenham gasto 270 milhões de dólares para encher o olho.

Por tudo isto, talvez valha a pena relançar a questão: para que servem os remakes live-action da Disney? Para mastigar a nostalgia dos adultos e apresentar “novos clássicos” às novas gerações? Para limpar as marcas de uma era de produção e assim higienizar o passado com as leituras contemporâneas daquilo que antes era ignorado pelo simples desejo de fantasia?

Para sermos justos, nem todas as modernas adaptações correram mal, como se vê pelos exemplos de O Livro da Selva (2016), de Jon Favreau, e A Bela e o Monstro (2017), de Bill Condon, que souberam transcender tanto a cópia certificada das respetivas animações como acrescentar texturas dramáticas, sem desvirtuar as narrativas por meros propósitos de agenda e posicionamento cultural. Esse será, pois, o cerne da pobreza do novo Branca de Neve, assinado por um quase anónimo Marc Webb, a quem valeu sobretudo a experiência como realizador de videoclips.

Do clássico supremo à maçã envenenada

Se nos lembrarmos que o clássico de 1937 foi um marco pioneiro no mundo da animação em geral, com o uso do Technicolor, e, por si só, a primeiríssima longa-metragem dos estúdios Walt Disney, então ainda se torna mais gritante a penúria criativa deste remake, focado na produção de mensagens boazinhas para espectadores em quem parece não se confiar na inteligência. Infelizmente, o problema dos mais recentes títulos originais da Disney (e não incluo aqui a boa surpresa Mufasa) é a prioridade da resposta submissa ao politicamente correto dos nossos dias, numa espécie de “pacote de medidas” de inautêntico progresso, em vez de uma preocupação verdadeira com a alma do(s) filme(s), fazendo do argumento um veículo de clichés confrangedores, de que nenhum ator se salvaria...

No cenário ideal, Branca de Neve teria sido tratado com aquela delicadeza que se reserva às relíquias - e esta foi tão importante para Walt Disney! Mas o que fica é o brilho estragado dos milhões, à sombra de polémicas que se refletiram no resultado envenenado.

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