Elogio das primeiras obras

Elogio das primeiras obras

O francês Jacques Audiard está de volta à competição de Cannes com um “quase” musical que desiludiu. Grande revelação na secção 'Un Certain Regard' é o norueguês Halfand Ullmann Tøndel.
Publicado a
Atualizado a

Que faz com que um cineasta tão interessante como o francês Jacques Audiard (Palma de Ouro em 2015, com Dheepan) se lance no projeto insólito e falhado de Emilia Perez? Tendo em conta as expectativas, e um elenco internacional que envolve Selena Gomez, Zoe Saldaña e Édgar Ramirez, o mínimo que se pode dizer é que a história do chefe de um cartel mexicano (Karla Sofia Gascón) que quer mudar de sexo para iludir a perseguição de que é alvo está recheada de inverosimilhanças dramáticas que a mise en scène falsamente barroca de Audiard está longe de conseguir resolver.

Desde muito cedo, Audiard demarca-se de qualquer filiação nos modelos correntes deste tipo de filmes, mas convenhamos que não ajuda o facto de, para mais, ele querer fazer um… musical! Com canções compostas pela francesa Camille Dalmais, Emilia Perez evolui como um objeto que a si próprio se nega a gratificação espetacular que o projeto terá ambicionado. Como retrato dos bastidores da circulação da droga não passa de uma derivação banal de matrizes que o próprio Audiard já cultivou com outra subtileza (recordo o exemplo de Um Profeta, Grande Prémio de Cannes/2009); como filme musical, digamos, para simplificar, que nem sequer sabe imitar as regras clássicas do género. 

Crianças & famílias

Entretanto, depois de Diamand Brut, da francesa Agathe Riedinger, na competição, eis mais uma primeira longa-metragem que é também uma genuína surpresa (agora na secção Un Certain Regard) - chama-se Armand e tem assinatura do norueguês Halfand Ullmann Tøndel.

O Armand do título está praticamente ausente das imagens. Acontece que ele e outro aluno da mesma escola primária terão protagonizado um episódio com perturbantes conotações sexuais. Convocados pela direção da escola, os pais das duas crianças vão viver um verdadeiro exercício catártico em que todos, familiares e professores, se confrontam com o mesmo enigma: que aconteceu, realmente, naqueles momentos que ninguém testemunhou e que, por fim, acordam os mais inesperados traumas dos adultos?

Em tempos de tantas visões simplistas do universo infantil, eis um exemplo de indomável rigor de encenação, sem certezas nem “lições” para vender, além do mais contando com um elenco hiper-talentoso em que se destaca Renate Reinsve (prémio de interpretação, em Cannes/2022, com A Pior Pessoa do Mundo). Enfim, não será uma “explicação” para o brilhantismo do filme, mas importa referir que o realizador é neto de Liv Ullmann e Ingmar Bergman.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt