Elizabeth Strout: “A história é quem a conta. Eu nunca me interessei pelo enredo”
Lucy Barton, Olive Kitteridge, Bob Burgess, por que é que decidiu voltar às mais queridas personagens dos seus romances anteriores e juntá-las neste Conta-me Tudo?
No início, não foi uma decisão consciente. Estava a passear e, de repente, apercebi-me de que eles estavam todos a viver no mesmo sítio. E, de alguma forma, não tinha pensado nisso até me aperceber de que o Bob Burgess vivia lá há muito tempo, a Lucy está lá com o ex-marido, a Olive está na cidade e pensei: vamos juntar a Olive e a Lucy, porque elas estão mesmo ali. Vamos fazer isso. Essa foi a primeira cena que escrevi, Olive e Lucy juntas. E depois, como gosto tanto do Bob Burgess - acho-o um tipo tão simpático, o pobre Bob, que não faz ideia de como é simpático, mas é - pensei: “Vamos usá-lo como personagem principal do livro.” Foi assim que tudo começou.
Estamos de volta a Shirley Falls e ao Maine. Escrever sobre o seu Estado natal é uma das razões que faz os leitores sentirem-se em casa nos seus livros?
Sim. Provavelmente, porque conheço o Maine muito bem. Sabe, venho de seis gerações de naturais do Maine. Cresci lá, ao ar livre, num ambiente muito solitário, por isso conhecia tão bem a natureza daquele lugar, e ainda conheço. Daí sentir que tenho de escrever sobre ele.
Não se imagina a escrever um romance situado noutro cenário?
Outros sítios, não. Só o Maine e Nova Iorque. Já escrevi sobre Nova Iorque porque vivi lá durante 40 anos, depois de sair do Maine. Portanto, esses são os dois únicos sítios que eu sinto que conheço suficientemente bem para poder escrever sobre eles. Escrever sobre outros locais seria escrever de fora para dentro e não de dentro para fora. E, para mim, essa não é uma boa forma de escrever.
Eu sei que lhe perguntam sempre isto, mas é difícil não o fazer, sobretudo quando diz que escreve de dentro para fora: a sua personagem Lucy Barton, que é escritora, é de alguma forma inspirada em si?
Não acho que ela seja eu mais do que o resto das minhas personagens. Mesmo o Jim Burgess… todos… O Bob… todos eles têm um pouco de mim. E eu vou sendo capaz de os conhecer tão bem como me conheço a mim própria. Eu pego nesse grãozinho de alguma coisa que sinto e depois transformo-o nas minhas personalidades.
Esse é o segredo do seu sucesso?
Deixe-me contar-lhe uma coisa. Estava a andar pelo passeio, esta manhã, aqui em Lisboa e ouvi uma mulher. Ela estava a falar em inglês, mas tinha sotaque, por isso pensei: “Ok, provavelmente é uma mulher local a falar com uma amiga que deve ser americana ou britânica.” A mulher disse: “Estou acordada desde as 3.00 da manhã.” A amiga perguntou: “Porquê?” E ela disse: “Não sei.” E eu pensei, bingo! Conheço essa sensação. Não sou de cá, como ela era, mas conheço essa sensação de acordar às 3.00 da manhã e não saber porquê. E é só isso. É tudo o que preciso de saber para começar. Percebe o que quero dizer? Ela estava a dizer algo que eu podia entender, e eu quero contar aos meus leitores algo que eles possam entender. O que é verdade para mim também deve ser verdade para si, talvez.
São momentos como esse que lhe dão a ideia para começar um novo livro?
Sempre me interessei pelas pessoas. E sempre soube que era uma escritora. Por isso, desde muito jovem, observava as pessoas. A minha mãe observava as pessoas, e ela era… ela tornava-as interessantes. Ela tornava toda a gente interessante. Porque ela própria era uma contadora de histórias. E assim, cresci a pensar que as pessoas eram o mais interessante que havia... E continuo a achar que não há nada mais interessante do que as pessoas. Somos tão diferentes e, no entanto, acho que temos mais semelhanças do que diferenças.
Conta-me Tudo
Elizabeth Strout
Tradução de Tânia Granho
Alfaguara
384 páginas
Uma ideia que pode parecer quase revolucionária no mundo de profundas divisões em que vivemos hoje…
Eu sei. As pessoas estão sempre a olhar para as diferenças. E as diferenças são de facto significativas, mas…
Já falámos de Olive e Lucy e de como foi com a cena delas juntas que começou este romance. Já alguma vez alguém lhe contou uma história na esperança de que escrevesse um livro sobre ela, como Olive faz com Lucy?
Talvez, de vez em quando. De vez em quando, há anos atrás. As pessoas diziam: “Tenho uma história para te contar.” Depois contavam-na e não era muito interessante. E apercebi-me de que o problema é que a história é quem a conta. Quem nos conta a história é responsável por a tornar interessante. Porque pode ser a coisa mais interessante do mundo, mas se não for bem contada, quem é que se importa? E isso foi algo que demorei muito tempo a perceber - é o contar de uma história que faz a história.
É quem conta a história que faz a história - muito mais do que o enredo, é isso?
Exatamente. Eu nunca me interessei pelo enredo. Nem sequer gosto da palavra [“plot”, em inglês]. É uma palavra tão feia. Não estou interessada no enredo. Apesar de acabar por ter um, regra geral.
Acaba por ter um enredo e, neste Conta-me Tudo, até temos um crime. Mas o verdadeiro mistério continuam a ser as personagens, as pessoas?
Sim, as pessoas e o que faz as pessoas avançarem. Ou o que faz as pessoas ficarem num lugar, como o pobre Matt Beach, tão subdesenvolvido durante tanto tempo da sua vida. Por que é que isso aconteceu? Quem era ele para ter feito aquilo? E, depois, porque é tocado pelo momento de graça com o Bob, é capaz de crescer, como a plantinha da Lucy.
A Aninhas?
Sim, a Aninhas. Ele só consegue crescer graças ao Bob.
O bom velho Bob...
O bom velho Bob, adoro-o. Acho que toda a gente gosta dele
Pensa nisso, se o leitor vai ou não gostar de uma personagem, quando está a escrever um livro?
As pessoas, por exemplo, não suportam o Jim Burgess. Eu percebo porquê, mas eu gosto muito dele. Acho que ele é uma personagem fabulosa. Faz-me rir por ser tão horrível. Porta-se tão mal! Mas eu compreendo-o. Percebo por que é que ele é assim. Adoro-o, mas percebo porque as pessoas não gostam dele. Porque é que haviam de gostar?
Deve ser um pouco como perguntar a um pai qual o filho de que gosta mais, mas tem uma personagem preferida?
Não, não tenho.
Neste livro está muito presente o mundo pós-pandémico. Sentiu necessidade de escrever sobre essa experiência a lidar com a covid-19 pela qual todos passámos?
Sim. Porque o tipo de literatura que quero escrever tem a ver com o tempo, a história e o lugar. E toda a gente nasce num tempo e numa história, e toda a gente nasce num lugar. Mas não se pode, na minha opinião, ter apenas uma personagem sem tempo e lugar. Por isso, pensei que não queria estar a escrever um romance político, mas precisava de reconhecer as coisas que estavam a acontecer politicamente. Como o facto de o país estar dividido. E estava. E estamos divididos agora. E o facto de pensarem que talvez houvesse uma guerra civil, era o tipo de coisa que se podia pensar. E depois aparece a Charlene Bibber, que é obviamente uma pessoa de direita. Mas que está a ser tratada, espero, de forma simpática pelo narrador.
Portanto, apesar de este não ser um livro político, a política acaba por estar presente?
Sim, porque esse é o tempo do livro.
Neste momento, e desde a eleição de Donald Trump, toda a gente fala da América, a toda a hora. No seu próximo livro, que sei que já está a escrever, vai falar de Trump?
Acho que vou ter de o fazer. Não vejo como posso não o fazer. É como se escrevesse um livro em 1942 e não mencionasse a guerra. Se o livro se passa no ano de 1942 e não menciona a guerra, se se passa na Alemanha e não a menciona, então que tipo de livro é esse? Por isso, acho que vou ter de o fazer, mas vou ter de esperar para ver onde vamos parar. Posso fazer um esboço do livro, mas tenho de esperar para ver o que vai acontecer. Não sei. Vai ser complicado.
Nesse livro tem uma nova personagem pela qual já disse estar apaixonada…
Não posso falar muito sobre isso. Mas sim, será totalmente diferente. Paisagens diferentes, pessoas diferentes.
Dizia há pouco que soube desde muito jovem que era escritora, mas só publicou o seu primeiro romance depois dos 40 anos.
Sim, escrevi-o quando tinha 35 mas só foi publicado quando eu já tinha 42.
Porquê ter esperado tanto se sempre soube que era isto que queria fazer?
Exatamente porque continuei a escrever, continuei a enviar coisas a toda a hora, a toda a hora, a toda a hora, rejeições, rejeições, rejeições, e depois finalmente consegui publicar uma ou duas pequenas histórias num sítio, de vez em quando, mas acho que o que acabou por acontecer foi que eu simplesmente... Quando olho para trás, apercebo-me de que estava a tentar escrever como um escritor e que, à medida que me ia desgastando, me apercebi de que bastava dizê-lo, pô-lo no papel e dizê-lo. E depois pensei: “É assim que eu escrevo, é esta a minha voz.” Foi um pouco como aprender a andar de bicicleta, ao escrever aquele livro, comecei a aperceber-me de que: “Oh, agora estou a fazê-lo, agora estou mesmo a escrever.” Eu andava a praticar há pelo menos 30 anos! Foi como encontrar o meu equilíbrio.
E receber o Pulitzer, foi um momento marcante?
Não. Quer dizer, foi um grande momento, não há nada de mau a dizer sobre ganhar o Pulitzer, mas não me alterou. Por um momento fiquei nervosa, porque pensei que agora ia ter mais leitores e por isso sentia-me mais responsável, mas depois percebi que não, sinto-me sempre responsável pelos meus leitores, por isso continuei a escrever, e continuei a escrever com o mesmo grau de tentativa de o fazer o melhor possível, quer fosse para um leitor ou para um milhão, isso não mudou realmente. E eu era mais velha, por isso não tinha de me deixar abalar por aquilo.
A Elizabeth é a prova viva de que quem diz que um escritor que vença o Pulitzer nunca deve voltar às personagens desse livro ou fazer uma sequela está completamente enganado.
Sim. Eu voltei. Nem acredito que voltei. Nunca tencionei voltar a escrever sobre a Olive. Mas depois estava sentado num café, em Oslo, e ela apareceu. Consegui vê-la, tão vividamente, a andar com um casaco vermelho e uma bengala e pensei: “Meu Deus. Ela está de volta.” Então voltei para o hotel e esbocei uma história e pensei: “Ok, vou ter de escrever sobre a Olive novamente.” Então escrevi Olive Again. Esse é o nome do livro: Olive, Novamente.
E ela vai voltar?
Não, acho que não. Ela tem 91 anos! Mas não vai morrer. Eu nunca a vou matar.