Edgar Ferreira, filmar com decoro os grandes prazeres da música clássica.
Edgar Ferreira, filmar com decoro os grandes prazeres da música clássica.Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Edgar Ferreira: “Quero que fiquem curiosos com este mundo da orquestra Gulbenkian"

A primeira obra de Edgar Ferreira é uma viagem pelos 60 anos da Orquestra Gulbenkian. O realizador de 'Soma das Partes' assume ter feito um filme em crescente temporal. Chega quinta-feira a 22 salas espalhadas pelo país.
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Um cineasta à procura do milagre da música. Em Soma das Partes, Edgar Ferreira até tenta chegar perto do mistério que a música traz para a transcendência de um músico, seja maestro ou instrumentista. Depois da curta A Música é Bela, Os Aeroportos são Tristes, aventura-se numa longa, neste caso comissionada pela fundação Gulbenkian para celebrar os 60 anos da Orquestra Gulbenkian. Para o ano conta ter pronta outra longa-metragem documental também em registo hagiográfico: celebra-se igualmente os 60 anos do Coro Gulbenkian.

Olha-se para o seu percurso e fica-se com a ideia de que é um cineasta aberto para a música. Será uma vocação?
Essa ligação não é propositada nem vontade minha. Tem a ver com um percurso que se colocou à minha frente. Mas essa questão da música tem sido um processo de aprendizagem. Quando comecei a trabalhar com a Fundação Gulbenkian não conhecia muito de música clássica. Ao ver como todo o processo funciona tenho recebido um conhecimento extra.

Mas assume que é um filme-encomenda.
Sim, a Fundação decidiu que havia um marco histórico com as seis décadas da Orquestra Gulbenkian e estendeu-me a mim e à minha produtora, a Galope, este convite.

E na sua cabeça como se poderia comemorar estes 60 anos de existência da Orquestra?
Quando me foi proposto havia logo aquela ideia: 60 anos, 60 minutos... O que se queria era incluir o máximo de perspetivas possíveis sobre aquilo que é a definição de uma orquestra. Dos músicos, maestros, espectadores, passando por coordenadores de orquestras, diretores do serviço de música a musicólogos. Desejava que houvesse a visão mais abrangente possível. Esta estrutura parecia fácil mas havia uma história a ser contada com muitos momentos históricos relevantes - aí percebi que seria mais complexo condensá-los em períodos tão curtos. O tempo é um tema muito abrangente... e permite fazer várias declinações: o tempo da música, o tempo da interpretação, o tempo da própria orquestra e o tempo da música que é tocada, música que subsiste no tempo. Falei com a argumentista, a Andrea Lupi, e percebemos que queríamos explorar todas essas variáveis. Tentámos abordar a questão do tempo com o maior detalhe possível. Curiosamente, na primeira versão do guião estávamos com 30 minutos que tinham de ser incluídos num segmento de 10... Cheguei a pensar que estávamos com um formato redutor, que nos obrigaria a excluir muita coisa importante.

Soma das Partes, oportunidade para ver a Orquestra Gulbenkian num grande ecrã.

Tiveram então de lutar para que tudo não ficasse demasiado abreviado?
Quisemos então ter tempo para alguma profundidade mas tivemos realmente que fazer esse exercício de reduzir ao essencial. Por exemplo, era importante explorar os Festivais de Música e aí decidimos incluí-los quando eles terminam. Isso reforça a importância do peso da criação da orquestra. Depois desse exercício de condensação ficámos surpreendidos com o ritmo que obtivemos. Fomos muito criteriosos e quisemos tirar a multi-adjetivação. Ganhámos uma cadência. O filme ficou acelerado.

Podemos falar em ritmo musical?
Isso. A própria estrutura do documentário vem dessa relação com a música que tem um determinado tempo. Gostava que se sentissem os intervalos de tempo. Claro que não é novo um filme que é marcado pelo tempo, sobretudo quando nos dá a sensação de contagem decrescente. Só que nós apostámos antes numa contagem crescente, sempre a somar. Acabou por ser um exercício de adição. Ainda me interroguei se o espectador não ficaria a contar o tempo, coisa que nunca é positiva, mas penso que não, aqui não acontece isso: há sempre a vontade de querer saber o que se passa nos dez anos a seguir.

O que queria que as pessoas tirassem deste Soma das Partes?
Falando como observador, este filme é a minha retribuição à generosidade de um músico quando dá um concerto. Gostava que as pessoas ficassem com interesse em conhecer esta realidade. Se pensarmos que a música não existe, não tem corpo e só pode ser vivida no momento em que é tocada, ou seja, algo tão frágil, este filme faz a questão paradoxal de como é que ainda persiste ao fim deste tempo todo. E eu acho que é precisamente por não ter corpo que mais facilmente se torna intemporal, ao contrário da pintura, que, por ter um corpo físico, acaba por ficar associada a uma época.

Já no filme de Marco Martins sobre o Ballet Gulbenkian, Um Corpo que Dança, salta à vista esse ideia de fascínio que a Gulbenkian cria em torno da música e da arte. É como se fosse um segredo...
Isso é verdade mas não sei o segredo. Tem a ver com uma obsessão pela excelência, algo com o qual me identifico com os músicos, esse trabalho constante até à perfeição... Ainda que não seja possível alcançar a perfeição, há sempre esse caminho. E isso está na génese de apoio à criação artística da própria Fundação Calouste Gulbenkian.

Nota-se nos músicos e em todos os entrevistados uma paixão enorme a falar deste tema. Acredito que não deva ter sido difícil sacar essas emoções de paixão...
Foi fácil mesmo! É muito natural para eles, sobretudo porque amam o que fazem. Mas neste caso há uma outra questão: o trabalho coletivo, sentirem-se uma peça de algo maior.

Maria João Pires, abrir o coração à orquestra...

Podemos falar da experiência humana que é estar a captar tanto talento extraordinário? Neste filme são entrevistados nomes como Maria João Pires, Lorenzo Viotti, Lawrence Foster e tantas outras sumidades da música clássica...
É incrível! Mas fiquei sobretudo surpreendido pela simplicidade destas pessoas. É fascinante encontrar uma das maiores pianistas do mundo, como a Maria João Pires, a ter aquela simplicidade... E o que diz acaba por ter camadas. Somos levados a pensar em muito mais quando a ouvimos a dizer que o respeito pela partitura é um exercício que nos convida para a descoberta.

Sentiu uma grande diferença na alma de um instrumentista e de um maestro?
Passa muito no documentário essa questão das diversas funções, que é fascinante. Mas a orquestra é um instrumento do maestro.

Torna-se determinante o conceito de colocar os entrevistados no palco do Grande Auditório Gulbenkian. É como que uma declaração de os colocar no centro de tudo...
Pois, mas não tornou logisticamente as coisas fáceis. Com a agenda do maestro Lorenzo Viotti estava muito difícil essa gravação, acabou por ser num sábado de manhã entre concertos e obrigou a uma grande logística. Conciliar as agendas dos entrevistados com a do Auditório foi complicado e eu não poderia fazer nenhuma entrevista noutro sítio diferente – derrotava todo o propósito de eles estarem no local a que se referem e a convocar memórias. Quero que Soma das Partes seja acessível também às pessoas que não conhecem esta orquestra, quero que fiquem curiosas com este mundo e que no final queiram saber mais sobre música clássica. Desde que estreámos no Festival Caminhos do Cinema Português de Coimbra que tenho tido o feedback que este filme deixa as pessoas ligadas.

Em que fase está o filme sobre o Coro Gulbenkian?
Espero estrear nos cinemas para o ano, mas serão filmes diferentes. Nunca quero fazer igual. Esse será a visão do coro sobre tudo o que está à sua volta. Serão objetos muito diferentes.

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