Eclipse total na estrada brasileira

<em>Deserto Particular</em>, de Aly Muritiba foi o filme proposto pelo Brasil para o Óscar de melhor filme internacional. Um interessante conto romântico sobre um casal improvável. Cinema brasileiro com coprodução da Fado Filmes.
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Um eclipse de coração num Brasil de muitos desertos. Por aqui passa algo da génese desta história de amor improvável contada em jeito de filme-de-estrada solitário. Deserto Particular é uma feliz co-produção entre o Brasil e Portugal (Luís Galvão Teles e Gonçalo Galvão Teles são produtores minoritários) cheia de metáforas e sinais interiores. Tal como a canção Total Eclipse of the Heart, de Bonnie Tyler, ouvida numa discoteca de província, as personagens desencontram-se em modo abstrato mas sem perder uma empatia, tão romântica como vencida.

A história de um polícia, Daniel, supostamente da Polícia Militar, a contas com um processo disciplinar depois de quase ter deixado morto um recruta num treino e com uma paixão à distância: conheceu uma mulher na internet e não pára de comunicar com ela no whatsapp. Nunca se conheceram e, subitamente, o caso da agressão de Daniel fica público e ele deixa de receber mensagens. A partir daí a sua obsessão aumenta e faz o impensável: abandona o pai doente e parte no seu carro até à outra ponta do Brasil para a conhecer, mesmo sem ter a morada dela. Chegado à Baía, começa uma busca desesperada.

Nesse jogo de metáforas de um Brasil dividido fala-se de todos e mais alguns contrastes: norte/sul, masculino/feminino, liberdade/preconceito. A estrada que separa Daniel do seu amor idealizado é um deserto de uma imensidão inexorável, um caminho de calvário, algures entre uma catarse total e uma aprendizagem dos caminhos do desejo. Aly Muritiba filma essa viagem sem nunca deixar de se levar pelo sabor das texturas da paisagem e da estrada, muitas vezes com uma certa afinidade pelo bas-fond, noutras pelos becos sem saída de uma solidão masculina tóxica, como se a personagem do polícia bruto fosse explodir ou...implodir.

Mais do que um retrato do Brasil estilhaçado e dividido de Bolsonoro ou uma mera balada gay, Deserto Particular é um estudo adulto e desenvolto sobre a política dos corpos. O corpo como fuga a uma opressão social, como último reduto de um manifesto sexual numa comunidade que tenta "curar" os comportamentos "desviantes". Em vez de ser um "body horror film", como manda a tendência, este afigura-se mais como um "body love film", daqueles que conserva uma nostalgia pela pureza da norma da "história de amor". Dispensava-se apenas a composição recorrente de cenas e situações sublinhadas com demasiada partitura musical. A dada altura sente-se que a narrativa precisava de respirar mais...

Impossível igualmente não se pensar em The Crying Game, de Neil Jordan, por algumas das voltas do argumento, embora a questão da dissimulação não seja o aspeto fundamental na proposta. Muritiba mostra-se sempre um cineasta muito seguro nos processos: tem uma câmara com ideias e uma solidez na abordagem da narrativa. Podem-lhe faltar rasgos, sobretudo na encenação de um erotismo que poderia ser menos mortiço, mas há algo que nos obriga a estar sempre nesta viagem, sobretudo a suave intensidade de atores como Pedro Fasanaro e António Saboia.

dnot@dn.pt

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