Há sempre um momento da secção competitiva de Cannes em que, ao descobrirmos um determinado filme, emerge uma pergunta incómoda: o que é que “isto” está aqui a fazer? Enfim, não quero generalizar, falo apenas por mim: porque é que Die My Love, da cineasta escocesa Lynne Ramsay, está a ocupar um lugar que podia pertencer a um dos títulos que, apesar de muitas sessões sobrepostas, ainda vamos conseguindo ver nas secções paralelas? Dir-se-á que Ramsay assinou filmes tão interessantes como Ratcatcher (1999) ou A Viagem de Morven Callar (2002)... Em Cannes, obteve até um prémio de argumento com Nunca Estiveste Aqui (2017). O certo é que Die My Love é uma confusão de drama conjugal, história de terror e panfleto feminista em que se assiste à vulgarização histriónica de uma atriz tão talentosa como Jennifer Lawrence, dir-se-ia a tentar “refazer” a sua composição em Mãe! (2017), de Darren Aronovsky (filme a todos os níveis incomparavelmente mais interessante). Daí mais esta pergunta: porque é que a produção japonesa A Pale View of Hills, de Kei Ishikawa, não está na corrida para a Palma de Ouro? Enfim, as margens de Cannes não estão escondidas: a presença de A Pale View of Hills na secção Un Certain Regard (que, para todos os efeitos, integra a seleção oficial) não deixa de ser uma boa plataforma de lançamento. Estamos perante uma belíssima adaptação do romance homónimo do “nobelizado” Kazuo Ishiguro (o seu primeiro, publicado em 1982), percorrendo as memórias labirínticas de mãe e filha, entre 1952 e 1982, ou seja, Nagasaqui e Londres. Com imaculada depuração clássica — é uma tentação evocar de imediato a herança do mestre Yasujiro Ozu (1903-1963) —, Ishikawa, também responsável pela adaptação, consegue esse equilíbrio mágico que nasce do entrelaçar das convulsões históricas (a começar pela memória da bomba atómica) com os detalhes mais secretos dos destinos individuais. Outro grande filme descoberto em Cannes surgiu no alinhamento da Quinzena dos Cineastas (ex-Quinzena dos Realizadores). Chama-se Enzo, nome da personagem central interpretada por Eloy Pohu, um talentoso estreante, e apresenta-se com uma dupla assinatura: Laurent Cantet e Robin Campillo. Acontece que Cantet faleceu em 2024, pouco depois de ter concluído o argumento do filme, precisamente com Campillo e também Gilles Marchand; Campillo acabaria por assumir a direção do projeto, embora faça questão em declarar que o verdadeiro autor do filme é Cantet — no genérico, Enzo é apresentado como “um filme de Laurent Cantet, dirigido por Robin Campillo”. A eventual definição desta história atribulada como o retrato de um jovem de 16 anos que resiste a assumir a sua homossexualidade corre o risco de encerrar o filme num cliché panfletário que, em boa verdade, não faz justiça à sua riqueza dramática e complexidade social. Isto porque Enzo vive dramas de muitos contrastes, nem sempre transparentes (nem mesmo para ele próprio). Enzo é alguém que encara o bem-estar financeiro dos pais como emanação de um mundo em que não se reconhece, a ponto de colocar a hipótese de não seguir os estudos, começando a trabalhar como ajudante na construção de uma casa perto da sua morada familiar; depois, a atração que sente por um colega operário, vindo da Ucrânia, vai projetá-lo num turbilhão de factos e emoções que, pura e simplesmente, desconhece... Para lá da questão das assinaturas do filme, talvez seja inevitável reconhecer que Enzo está marcado por sinais que fazem lembrar as trajetórias tanto de Cantet como de Campillo. O primeiro arrebatou mesmo uma Palma de Ouro em Cannes, em 2008, com A Turma, também um retrato de uma adolescência em convulsão; o segundo (que foi, aliás, argumentista de alguns títulos de Cantet, incluindo A Turma) dirigiu 120 Batimentos por Minuto (2017), uma visão contundente das convulsões sociais dos tempos mais dramáticos da epidemia da sida.Em Cannes .A Nova Vaga renasce em Cannes .Babelsberg: um nome forte na paisagem de Cannes