"Obrigada a ti, Sympterichthys unipennis, estranho peixe com mãos; obrigada à Pristimantis anotis, à Atelopus pinangoi e às vinte e duas outras espécies de anfíbios tropicais que não tiveram tempo de receber um nome finlandês; obrigada às inumeráveis espécies de acarídeos que desapareceram demasiado rápido para que os investigadores tivessem tempo para as classificar...” Em duas páginas, a finlandesa Iida Turpeinen desfila o obituário da fauna extinta ao longo de sete anos, tantos quantos lhe ocupou a escrita do livro A Existência da Vida (edição Livros do Brasil), obra que no original recebeu o título Elolliset. A partir de Helsínquia, de onde nos responde, Turpeinen chama a estas páginas de agradecimento “um breve memorial” e acrescenta que “para meu horror, esse número rondava as 400 espécies. E, embora eu imaginasse estar a acompanhar de perto os debates sobre extinção, só tinha ouvido falar de talvez quatro ou cinco das que constavam da lista. Isto significa que quase 400 formas únicas de vida desapareceram sem que a maioria de nós alguma vez se apercebesse”. A autora, nascida em 1987, académica interessada pela relação entre as ciências naturais e a literatura, também nos traça os objetivos de uma obra que atravessa os séculos XVIII, XIX e XX e que nos coloca frente a uma reflexão, a da história cultural da extinção: “com o meu livro, quis resistir ao esquecimento coletivo. Porque, se não conseguimos perceber uma catástrofe enquanto ela acontece, torna-se quase impossível responder-lhe. Quis encontrar uma forma de mostrar que a vaca-marinha não foi um caso isolado, mas um elo na longa cadeia de extinções causadas por humanos”.O gigante das águas árticasSituemos o âmago da história: 1741, o naturalista Georg Wilhelm Steller, junta-se à Grande Expedição do Norte que explora uma rota marítima entre a Ásia e a América. A empresa não concretiza o intento, mas faz uma descoberta. No arquipélago das ilhas Comandantes, no oceano Pacífico, habita uma espécie animal desconhecida, um gigante herbívoro, de pele espessa e escura, desprovido de dentes, que se alimenta de algas marinhas e se move lentamente pelas águas frias do estreito de Bering - último representante de uma linhagem ancestral de sirénios, mamíferos marinhos aparentados dos elefantes, hoje reduzidos aos dugongos e manatins. A vulnerabilidade da vaca-marinha-de-Steller (Hydrodamalis gigas) - a sua lentidão, o tamanho descomunal, a carne, o leite, a gordura e o couro - ditou-lhe o destino: em 27 anos a espécie foi extinta. .No seu livro, Turpeinen amplifica a escala da perda ao fazer-nos compreender a dimensão do animal. Inclui uma tabela com as medidas efetuadas por Steller ainda no século XVIII. Eis um excerto: “distância do lábio superior à cauda: 752 cm (...); circunferência da cabeça: 122 cm (...); comprimento da língua: 30 cm (...); largura da cauda: 198 cm (...); largura do coração: 64 cm”. O animal pesaria entre oito e dez toneladas. Uma ideia de extinção “Durante muito tempo, sonhei escrever um romance que explorasse a nossa relação com a natureza através da história da ciência. Mas faltava-me um ponto de entrada. Na primavera de 2016, encontrei-a por acaso numa visita ao Museu de História Natural de Helsínquia. Andava pela sala dos esqueletos quando um animal me chamou a atenção: uma armação grande e desconhecida que eu não conseguia identificar. Parei diante do esqueleto maciço e volumoso e li a pequena placa colocada à frente. Restavam no mundo apenas alguns esqueletos completos”.Os dados sucintos que descreviam o animal desencadearam em Turpeinen uma cascata de perguntas: “porque desapareceu tão depressa este enorme mamífero marinho após o encontro com humanos? E como é que um dos poucos esqueletos sobreviventes veio parar aqui, à nossa pequena cidade do Norte? Comecei a ler e percebi rapidamente que a história desta criatura era a história que eu procurava”. Ao longo do processo de escrita, a autora discerniu um novo caminho: “Fui entendendo que o livro se estava a tornar não só a história da vaca-marinha, mas também a história do próprio surgimento do conceito de extinção e de como esse conceito transformou a nossa compreensão do nosso lugar no mundo e da nossa relação com a natureza. Aqueles homens podiam encontrar novas espécies com curiosidade e sem preocupação, porque não tinham noção da fragilidade e vulnerabilidade da natureza. O mundo era uma ordem fixa criada por Deus para a humanidade, um sistema cujas estruturas e funcionamento estavam totalmente fora do nosso poder de alterar”.Turpeinen recorda que “a própria ideia de extinção só emergiu no início do século XIX, quando os paleontólogos começaram a desenterrar, das profundezas da terra, esqueletos de ‘monstros’ cada vez mais bizarros - dinossauros, mamutes e pterossauros. Para os estudiosos da época, esses ossos estranhos colocavam uma pergunta inquietante: para onde tinham ido aquelas criaturas? Alguns acreditavam que se haviam apenas retirado para longínquas regiões selvagens, para além do alcance da atividade humana”. Neste contexto, a finlandesa recorda-nos um episódio pitoresco. “Thomas Jefferson, futuro presidente dos Estados Unidos, chegou a equipar uma expedição encarregada de procurar mamutes nas pradarias do Wild West. Pouco depois, porém, tornou-se claro que não havia “elefantes do Ártico” a vaguear pelo Arizona”. “Visto no seu enquadramento cultural, o retrato que emerge da nossa espécie é muito mais complexo do que a narrativa simplificada de uma humanidade gananciosa e auto-interessada. Acredito, por isso, que a nossa resposta lenta à crise da biodiversidade não é apenas indiferença: é também um genuíno desconcerto perante uma mudança profunda de cosmovisão”. Também uma história de mulheres Turpeinen situa o leitor em diferentes contextos: nos frios mares árticos, no território russo do Alasca de meados do século XIX, no ambiente sombrio das salas do Museu Finlandês de História Natural da década de 1950. “Cativou-me perceber que a vaca-marinha significou coisas muito diferentes para pessoas do século XVIII, do século XIX e do século XX. E creio que esta perspetiva é fundamental também para o nosso tempo: a nossa maneira de ver o mundo não é universal, está ligada a um momento histórico e a um modo particular de pensar”..A Existência da VidaIida TurpeinenLivros do Brasil224 páginas .Entre as descobertas mais “deliciosas” no processo de pesquisa do livro, a autora destaca “saber que existia em Helsínquia um museu de que nunca tinha ouvido falar. E havia boa razão para isso: o museu fora declarado secreto, a sua própria existência escondida do público. O Museu dos Ovos revelou-se, além disso, profundamente relevante para os temas do meu livro. Até ao início do século XX, a recolha de ovos era uma forma respeitada de estudar a natureza, ensinada até às crianças nas escolas. Pouco depois, porém, tornou-se claro que esse passatempo, visto durante muito tempo como expressão de amor pela natureza, estava de facto a empurrar muitas espécies de aves para o limiar da extinção. A recolha de ovos foi então proibida e as próprias coleções transformaram-se numa espécie de segredo interdito. Foi um golpe de sorte narrativo o esqueleto da vaca-marinha-de-Steller ter sido restaurado precisamente pelo conservador [John Grönvall] responsável pelas coleções do Museu dos Ovos”.As páginas d’A Existência da Vida guardam a voz de mulheres historicamente ignoradas, como Hilda Olson. “Sempre me incomodou a forma como as mulheres parecem não existir nas histórias ligadas à ciência ou surgem apenas como figuras de fundo, a apoiar os homens. Quando percebi que eu própria estava a escrever um livro sobre história da ciência, não quis produzir mais um relato sobre as grandes façanhas de grandes homens onde as mulheres não têm papel. Impus-me uma tarefa consciente: metade das personagens principais seriam mulheres, embora, nessa fase, eu não soubesse ainda quem seriam. Mas tinha a certeza de que deviam ter existido mulheres que, de algum modo, se ligaram à vaca-marinha-de-Steller ou ao esqueleto que acabou por chegar a Helsínquia”.Iida Turpeinen não é debutante no mundo da escrita com este seu livro lançado originalmente em 2023. Para além deste romance, escreveu contos e uma novela gráfica sobre Ellen Thesleff, pintora expressionista finlandesa. Sobre a aproximação ao mundo da escrita conta-nos que “quando era jovem, a minha mãe trabalhava num centro de natureza numa ilha chamada Harakka, ao largo de Helsínquia. Passei lá muito tempo, o que me deu a oportunidade de observar de perto o trabalho de biólogos, químicos e outros cientistas naturais - uma janela fascinante para o mundo da ciência. Quando chegou a altura de escolher o que estudar, hesitei durante muito tempo entre as ciências naturais e a literatura. A decisão acabou por ser selada pelo livro do exame de acesso: nesse ano, a leitura obrigatória para Literatura Comparada era O Mestre e Margarida, de Bulgakov. Quando o abri, soube que a escolha estava feita: nenhuma publicação de geologia alguma vez me poderia prender ou falar com a mesma força que aquele romance. Soube também cedo que queria abordar o mundo da ciência através da ficção. Quando comecei a escrever A Existência da Vida, o círculo fechou-se, de certo modo: pude habitar tanto o mundo da ficção como o mundo da ciência - e é esse o mundo que quero continuar a explorar”.No presente, Turpeinen trabalha no seu próximo romance, “que parte de uma das mais bizarras mistificações científicas do século XIX. No seu cerne está uma pergunta que me parece hoje mais premente do que nunca: o que é que torna o conhecimento verdadeiramente fidedigno? A própria burla girava em torno de animais, dando-me a oportunidade de regressar a uma das minhas fascinações permanentes - a relação intrincada, muitas vezes desconfortável, entre humanos, ciência e o mundo animal. Outra coisa maravilhosa é que fui convidada a escrever o próximo romance como investigadora/escritora residente no Museu de História Natural de Helsínquia. Agora, a colaboração com cientistas passou, de forma admirável, a fazer parte do meu processo diário de escrita”.