"Pérola pingente em forma de pêra, de boa cor e boa água" (como é descrita no testamento de Filipe II de Espanha, I de Portugal, o homem mais poderoso do seu tempo), a Peregrina aparece representada em quadros de Antonio Moro, Pantoja de la Cruz, Rubens ou Velásquez. Adorna invariavelmente uma grande personalidade histórica, até que, em pleno século XX, foi oferecida por Richard Burton a Elizabeth Taylor como testemunho de um amor maior do que a vida. Esta extraordinária saga acaba de ser reconstituída pela escritora espanhola de origem uruguaia, Carmen Posadas, no livro A Lenda de La Peregrina (edição Casa das Letras). Autora de uma vasta obra traduzida para 23 línguas, a autora admite, nesta entrevista exclusiva ao DN, que a move o gosto de espreitar "pelo buraco de fechadura da História" e contar as histórias que foram deixadas na penumbra. O que já fizera em dois outros livros seus, publicados em Portugal, A Mestre de Marionetas e A Filha de Cayetana..Este é um livro invulgar em que o protagonismo é dado a um objeto inanimado, uma pérola, e não aos reis, dignitários poderosos, estrelas de cinema, que são quase figuras secundárias. Como começou a encarar a ideia de escrever esta história? Creio que depois da morte da minha mãe, quando comecei a querer contar a história de um anel de pedra azul que estava há duas gerações na minha família. Olhava-o e não conseguia evitar pensar que se tratava da testemunha muda de muitas histórias. Um dia dei por mim a pensar o que aconteceria se, em vez de falar daquele anel, contasse a história da Peregrina, com tantos séculos de existência. No Dom Quixote já se falava na Peregrina, no Museu do Prado vemo-la no peito da mulher de Filipe II, 200 anos mais tarde está no chapéu de Carlos II. É uma história que começa no tempo do escravo que a recolheu no mar, no Panamá, e vai dando voltas e voltas pelas mãos de reis, assassinos e acaba no decote de Elizabeth Taylor. Pareceu-me uma forma muito curiosa de contar mais de 400 anos de História..E agora sabemos onde e com quem está? A única coisa que se sabe é que houve um leilão depois da morte de Elizabeth Taylor e que foi vendida pelo preço recorde de 12 milhões de dólares. E aquilo que me ocorre perguntar é: Quem que compra algo valioso para o ter escondido num cofre? Sabemos que está num país árabe e que, um destes dias, reaparecerá. Ela sobreviveu a mil e uma peripécias, desde revoluções a incêndios, por isso, não "nasceu" para estar guardada a sete chaves..Para si, o que a torna tão atrativa? É algo mais do que o valor financeiro? É um objeto tão fora do comum que está sempre associada aos centros de poder. Quando caem os Austrias em Espanha, ela passa para a nova dinastia, os Bourbons, depois para a família Bonaparte e assim sucessivamente. Até que chega a outro império mítico dos tempos modernos que é Hollywood..Porém, como diz no livro, as pérolas têm fama de trazer má sorte aos seus proprietários. Em Espanha diz-se que as pérolas causam tantas lágrimas como gargalhadas. No caso da Peregrina vemo-la associada a situações muito dramáticas de todo o tipo mas também a outras muito divertidas ou, pelo menos, curiosas. Procurei equilibrar essas duas facetas,.Em obras anteriores suas, também históricas, como A Filha de Cayetana e A Mestre de Marionetas, o humor está muito presente. É uma opção narrativa sua? Acredito, como Oscar Wilde, que quando as coisas são terríveis acabam por ter um lado cómico, ou, pelo menos, caricato, o que, na vida, talvez nos permita tomar alguma distância e não ser esmagado pelos acontecimentos. Nos meus livros sinto que o humor permite criar um clima de cumplicidade com o leitor..Não começou pelo romance histórico, mas acabou por o preferir nos seus últimos livros. É um género em que se sinta confortável? Gosto muito de descobrir histórias que ficaram esquecidas. Neste livro, ao falar do reinado de Filipe II, não vou repetir o que já se disse milhares de vezes, como a batalha de Lepanto ou a construção do Mosteiro do Escorial. Quis proporcionar aos leitores a sensação de estar a espreitar pelo buraco da fechadura a vida quotidiana do rei e dos que lhe eram próximos..Foi o que fez em A Filha de Cayetana, onde nos fala da menina mestiça adotada pelos Duques de Alba, no final do século XVIII? É surpreendente que as pessoas não conheçam este caso porque existem, pelo menos, dois retratos desta menina pintados por Goya. Quando me apercebi dessa contradição pareceu-me que estava na altura de reconstituir também esta História muito esquecida e, com ela, a dos escravos na Europa moderna. Concluí que eram considerados objetos de aparato e de luxo dos seus senhores, uma espécie de sinal exterior de riqueza..Em A Mestre de Marionetas, fala de uma época bem mais recente, a das últimas décadas do franquismo e depois da transição democrática. Foi mais difícil? É mais difícil falar de épocas muito recentes do que das remotas, antes de mais, porque se eu disser um disparate sobre algo que se passou no século XVIII, há muitas probabilidades de que não se dê por isso. Mas se me enganar sobre um pormenor dos anos 70, serei "fuzilada"..E houve quem se sentisse retratado no livro? Houve e gerou-se alguma polémica. Eu não tive o propósito de falar de uma ou mais pessoas em particular porque o que me interessa são os fenómenos sociológicos. Quis deter-me sobre um tipo de pessoas que aparecem muito nas revistas cor-de-rosa e que, na verdade, não têm outra ocupação na vida para além de aparecerem. Não escrevem, não pintam, não trabalham e, no entanto, comportam-se como grandes personagens..Como está a correr a escola de escrita que tem com o seu irmão (Gervasio, também escritor)? Estou muito orgulhosa. Já trabalhamos há muitos anos e temos tido muitos alunos publicados, alguns até com prémios literários. É curioso verificar que, com a pandemia, tivemos mais alunos do que nunca. Alguns deles talvez não tivessem realmente o sonho de se tornar escritores mas queriam, sim, deixar aos filhos e netos o testemunho da sua vida e esse é um objetivo tão nobre como qualquer outro..A Lenda de La Peregrina Carmen Posadas Casa das Letras 496 páginas.dnot@dn.pt