Está há oito anos como diretor artístico do Teatro da Trindade. Está cansado?Gosto muito do que faço. Sinto um enorme privilégio e uma enorme responsabilidade. E como faço as coisas de coração aberto, e intensamente, enquanto sentir que o meu contributo é válido, é útil e é reconhecido, quero continuar. Mas se amanhã tiver que sair, sairei. Não estou agarrado ao tacho, como agora se costuma dizer.Até porque não limita também a sua atividade como ator...Não, de todo. É evidente que, estando eu aqui nesta qualidade, não me ponho a jeito para representar noutros teatros. Seria, no mínimo, pouco ético da minha parte. E o que faço é utilizar-me também como ator e encenador e dou esse contributo para o projeto nos espetáculos que levamos à cena.O que é que ainda gostava de fazer?Tanta coisa. Tenho a gaveta cheia de textos incríveis que quero levar à cena. Estou sempre muito atento às novas gerações, porque fascina-me a possibilidade de ver e dar oportunidade aos novos talentos de poderem mostrar e exercer o seu trabalho. Sempre que posso, faço audições. Agora, para A Gaivota, eu sabia que estava à procura de uma Nina muito especial, a Nina é uma personagem icónica d’A Gaivota, que, curiosamente, foi feita pela Alexandra Lencastre há muitos anos no Teatro da Graça, e ela agora volta a este, já noutra qualidade, vem fazer a Arkadina. Mas eu queria uma Nina com uma energia e uma sensualidade muito específicas, e então decidi fazer audições, convidei 20 atrizes do mercado, e depois ela apareceu [a Rita Rocha Silva], e quando a vi, até me comovi. Toda essa dinâmica antes, mas mesmo durante e até pós os espetáculos, é algo que me fascina, porque são várias fases do mesmo trabalho. .O próximo ano é o último deste terceiro mandato na direção artística do Trindade. E a seguir? Depois veremos o que é que vai acontecer. Se me perguntarem se eu estou com vontade de continuar, digo desde já que sim. Desde que as premissas do jogo se mantenham. Que tenha este espaço para poder explorar um projeto que deu trabalho a implementar e cujos resultados, entretanto, se afirmaram. A premissa deste projeto é particular, é híbrida, nós não somos um teatro do Estado. Mas também não somos privados.São da Fundação Inatel, tutelada pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social.Exatamente. É a Fundação Inatel que detém o edifício e que suporta financeiramente a estrutura. Quando a anterior administração me convidou para vir aqui desenhar um projeto artístico, pôs-me como premissa a sustentabilidade. E o que é que isto significa? Significa que eu poderia gastar uma verba autorizada desde que conseguisse ir buscar esse valor em receita. É um projeto autossustentável, toda a atividade paga-se a si própria. Na verdade, o projeto não nasceu aqui. Eu fui diretor artístico do Teatro Maria Matos, depois da sua renovação, e fui também desafiado para desenhar um modelo. Desde cedo senti que muitas vezes os espetáculos não eram suficientemente explorados ou rentabilizados, o investimento público não era maximizado. Ou eram muito comerciais, as comédias fáceis, os musicais, enfim, que o meio olha com algum desdenho, ou então havia o teatro para a elite. E isso sempre me incomodou, porque havia uma espécie de ‘snobeira’ intelectual relativamente aos espetáculos que pudessem correr bem. E lembro-me de viajar, ir a Londres, a Paris, a Espanha, e de ver os teatros cheios, e com boas peças, e com grandes atores, e pensar porque é que o nosso mainstream tem que ser sempre uma coisa fácil, ou pelo menos perspetivada de uma forma pouco simpática. No Maria Matos tentei implementar este modelo, que é carreiras de média e longa duração, para maximizar os recursos financeiros, técnicos e humanos, e teve muito sucesso, até que acabei por sair. Passados três anos fui convidado para o D. Maria, onde, de alguma forma, ajustei o projeto à realidade de um primeiro teatro do país, com a sua missão de serviço público, com toda a expectativa que necessariamente gera. E também aí tive a oportunidade de implementar o mesmo modelo, comecei a fazer peças de repertório, clássicos, desafiei os melhores encenadores do país, os melhores atores do país, para me ajudarem a pôr em pé um projeto sustentável, de qualidade. E mais uma vez os resultados apareceram. Depois acabei por sair em conflito com o governo de então, que quis implementar cortes muito drásticos, e insurgi-me, e fui convidado a sair, fui demitido em conflito. Aqui, no Trindade, foi a primeira vez que efetivamente me disseram que o projeto tinha que ser sustentável, que era algo que eu de alguma forma já acreditava que era possível fazer nas estruturas que dependem do Estado. . Nestes oito anos tem conseguido implementar a sua estratégia para o Trindade?Sim, absolutamente. E é financeiramente sustentável. Foi sempre. Conseguimos sempre que as receitas ultrapassassem a despesa, temos tido médias de 75 mil espetadores por ano, e se for ver o histórico dos espetáculos que fizemos nos últimos oito anos, verá uma variedade grande de textos, mas todos eles de reconhecido mérito. Num eventual novo mandato manterá a estratégia de carreiras mais longas?Claro, que é uma coisa um bocadinho fora da caixa. Porque a maior parte das estruturas de produção que dependem direta ou indiretamente do Estado, estou a pensar nos teatros nacionais, os teatros municipais, no CCB, na Culturgest, os espetáculos ficam duas semanas, três semanas, se tanto. Mas quer no Maria Matos, quer no D. Maria, sempre que os projetos estavam muito tempo em cena, com muito sucesso, eu ouvia bocas do género, isto não é teatro comercial, como quem diz, não é suposto estar tanto tempo em cena, mesmo que as salas estivessem cheias. Aqui não, podia fazer isso. E foi o que fiz. Tanto que os projetos aqui já não duram apenas oito semanas, estão pelo menos dez em cena, na sala principal, mas chegam a estar o dobro, conforme o potencial que cada projeto tem. E isso tem-me deixado muito satisfeito, porque sinto, em consciência, que não tenho facilitado, ou seja, não deixei de fazer os clássicos, não deixei de fazer Shakespeare, Ibsen, Strindberg...O seu projeto é um misto de peças mais populares e de clássicos?Popular não sei se é o termo. Eu faço uso de um teatro de repertório, testado, ou seja, peças que já foram feitas um pouco pelo mundo inteiro, com sucesso, e são essas que eu trago à sala principal. Na sala estúdio, a premissa é um bocadinho diferente. .A ideia snob de que o grande teatro, a grande arte, é para elites, é algo que me deixa muito desconfortável. Há cada vez mais produções independentes, por exemplo, na área dos musicais. Há mais concorrência? Como está o panorama teatral?Está incomparavelmente melhor e mais dinâmico do que estava há 20 anos. Há muitas estruturas a produzirem, ou seja, percebeu-se que o mercado do teatro pode ser um mercado rentável. E só assim se justifica que haja produtoras independentes, há pelo menos três ou quatro grandes que recorrentemente fazem espetáculos, musicais ou não, a Força de Produção, a UAU e outras. Nós não olhamos uns para os outros como concorrência, todos contribuímos para um mercado mais dinâmico, crescente, com novos públicos.E há público para tanta oferta?Nós estamos a falar de um universo de público acima dos 100 mil espetadores. Hoje temos gente mais letrada, temos pessoas que viajam mais, temos uma classe média mais educada, com interesses. A ideia, como falava há pouco, de que as artes são para uma elite muito iluminada, e que o povo é burro, não faz sentido nenhum. . Entre todas as suas valências, encenador, ator, diretor artístico, do que é que gosta mais? Eu sou, acima de tudo, um ator. Se eu tiver que me definir, é o que eu sou. Sou um ator. Sou um ator que faz muitas coisas. Sou um ator que faz televisão, faz teatro, navego em todas essas águas. E tudo o mais deriva dessa natureza. Como encenador, nunca me esqueço de que sou ator. Isso está impregnado em todas as vertentes e todas as atividades que tenho. Mas aquela de que mais me orgulho, indiscutivelmente, aquela que daqui a uns anos - espero que muitos, quando olhar para trás, em retrospetiva, que ainda não o faço -, será seguramente esta de, nem sei qual é o termo... diretor artístico não o define bem. É alguém que pôde fomentar e pôde criar oportunidades para os artistas, para o talento, para o público, numa relação muito próxima, saudável e espero que de sucesso. É muito curioso, o homem que criou o Teatro da Trindade, Francisco Palha de Lacerda - eu também sou Lacerda - , foi também diretor do Teatro Nacional D. Maria II e saiu inconformado com uma certa rigidez e um lado muito institucional que o Teatro Nacional de então tinha, e que ainda hoje tem, e quis criar um teatro que fosse de qualidade, mas transversal. Ou seja, que chegasse ao grande público. E é exatamente isso que eu defendo. A ideia snob de que o grande teatro, a grande arte é para elites, é algo que me deixa muito desconfortável. .O homem que criou o Teatro da Trindade, Francisco Palha de Lacerda, foi também diretor do Teatro Nacional D. Maria II e saiu inconformado com uma certa rigidez e um lado muito institucional que o Teatro Nacional de então tinha, e que ainda hoje tem.Em relação ao Teatro Nacional da D. Maria II, tem algum arrependimento?Não, fiz aquilo em que acreditei. Talvez tivesse reagido um bocadinho a quente. Sou impetuoso e apaixonado por aquilo que faço. E acho que fizemos ali um belíssimo trabalho. Ainda tenho pessoas que me falam daquele tempo. Quando temos à nossa frente interlocutores, representantes do poder, que tutelam a nossa área de ação, mas que no fundo não dominam nem as linguagens, nem as especificidades, isso deixa-me sempre muito frustrado. Quando, na altura, tentei provar que os cortes que eles nos estavam a impor, transversais, - porque estávamos numa crise , eu entendo isso -, já tínhamos economizado, já tínhamos contido, e nada disso foi tido em consideração, porque não houve essa disponibilidade, senti-me frustrado, para dizer o mínimo. Hoje estou mais velho, não deixo de acreditar nos mesmos valores, nos mesmos princípios, de lutar pelas coisas em que acredito. Se calhar, penso mais antes de agir, ou pelo menos antes de falar. .Gostava um dia de voltar para o Teatro D. Maria II?Para já, adoraria poder continuar no Trindade e fazer o trabalho que tenho feito, em que acredito.Qual deve ser o papel do Teatro Nacional e, em sua opinião, está a ser cumprido?Está a colocar-me uma posição difícil, tendo eu sido diretor. O que digo é que o Teatro Nacional tem os recursos para poder fazer um trabalho de captação e de fixação de novos públicos e, sobretudo, fazer os projetos que a maior parte das outras estruturas não têm capacidade de fazer. Os clássicos, os gregos, os 'Shakespeares', os 'Molières'. Ou seja, há uma panóplia de textos que merecem e devem ser feitos, mesmo com roupagens novas. Acompanho muito o teatro nacional em Inglaterra e eles têm uma programação muito eclética, fazem clássicos, mas também fazem textos contemporâneos, mas fazem com enorme qualidade, com recursos que nós não temos. Se compararmos as estruturas, o Teatro da Trindade e o D. Maria, eles são basicamente idênticos. As salas têm a mesma capacidade, são cerca de 400 lugares, ambos têm uma sala estúdio, a nossa tem 50, a deles tem 100. O nosso orçamento deve rondar, com a programação - porque isto todos os anos varia em função dos projetos - à volta de 1,5 milhões, 1,6 milhões de euros. Um milhão é para a estrutura, 500 ou 600 mil é para a atividade. E tenho que ir buscar esses 500, 600 mil à receita, como expliquei. E temos 28 pessoas na estrutura fixa para pôr isto a funcionar. O Teatro Nacional de D. Maria II tem um orçamento de sete milhões e tal. Mais de dois terços desse orçamento são só para a estrutura. Eles têm, seguramente, mais de 100 pessoas fixas. A questão é se aquilo que eles estão a gerar em termos de produção, de programação, justifica os resultados que têm tido. Claro que o Teatro Nacional D. Maria II tem estado fechado, está a sofrer obras. Mas não sinto uma presença forte do D. Maria II hoje em dia no meio teatral. Há outros projetos mais interessantes. Vamos dar ao Pedro Penim o benefício da dúvida agora na reabertura, e desejo-lhe o maior sucesso. O que mais gostaria é ter vontade de ir lá. De ir ver os espetáculos. E isso não acontece frequentemente. .O que mais gostaria é ter vontade de ir lá [ao Teatro Nacional D. Maria II]. De ir ver os espetáculos. E isso não acontece frequentemente.Se pudesse pedir alguma coisa à administração da Fundação Inatel para o Teatro da Trindade, o que seria?Há alguns investimentos de que a estrutura precisa. É um edifício muito antigo. E gostava que eles pudessem ajudar-nos a modernizar a estrutura. Isso implica um investimento caro. O bar do teatro está a precisar desesperadamente de uma renovação. Está muito datado. E, neste momento, até está fechado. Mas eu, para ser franco, se me deixarem continuar a fazer o que estou a fazer, já fico feliz. Vai ser um ano [2026] muito rico de experiências. Com a encenação de A Gaivota, depois com o espetáculo do Clube dos Poetas Mortos, que está a gerar uma procura inacreditável. O espetáculo estreia em maio e, neste momento, já vendemos quase cinco mil bilhetes. O que tem pensado para 2027?Já tenho uma série de textos apalavrados, já pedi os direitos de uma série de peças. Há uma preocupação, nos textos que escolho, de haver uma reflexão, ou de propor uma reflexão sobre o momento em que estamos a viver. Porque a arte é isso. A arte funciona como um espelho. Não é só entreter. Os textos que procuro normalmente abordam sempre questões que estão iminentes, que estão na ordem do dia. Sobre os quais há uma urgência para falar. Pode ser uma urgência minha, mas muitas vezes ela expressa uma angústia coletiva. E isso, para mim, é uma responsabilidade, é uma obrigação. Porque eu sirvo um bem maior. Não estou aqui para me servir, estou aqui para poder provocar uma discussão e uma reflexão. . E fora do Teatro da Trindade, há novos projetos?Estou a gravar uma mini novela, Amor Maior, que não sei quando é que irá para o ar. Tem a particularidade de eu fazer par com a Alexandra. Somos um casal, um casal desavindo, já de uma certa idade, com filhas. É uma história engraçada, porque é uma história muito humana, de uma dinâmica muito familiar e dos dramas familiares. E para já é isso que estou a fazer e já chega, porque entre gerir o teatro, os ensaios e gravar, já fico muito preenchido.E cinema?Tenho feito alguma coisa. Recentemente estreou O Lavagante. Foi um filme que me deu imenso gozo de fazer. Era um projeto do António Pedro Vasconcelos que o Mário Ferreira depois agarrou brilhantemente. E tive uma pequena participação, mas que me deixou muito feliz. Também participei num filme que se chama Vindima, que foi todo rodado este ano no Douro. E é a partir da obra do Miguel Torga. Miguel Torga escreveu este romance que é uma homenagem ao Douro, interpreto uma das personagens, faço par com a Sandra Faleiro. Tenho feito algumas participações. Eu gosto muito de fazer cinema. Não tenho feito tanto quanto desejaria, por duas razões. Uma, porque efetivamente não há muito cinema português. E outra, talvez, porque há um bocadinho de preconceito de alguma classe cinéfila relativamente aos atores que são muito televisivos. E eu posso às vezes padecer desse mal. .Há uma preocupação, nos textos que escolho, de propor uma reflexão sobre o momento em que estamos a viver. Porque a arte é isso. A arte funciona como um espelho. Não é só entreter. E se só pudesse escolher fazer ou teatro, ou novelas ou cinema, o que seria?Teatro. Não me imagino a fazer outra coisa. Porque é, de facto, o sítio onde me sinto mais em casa. Literalmente. Porque há tempo, temos tempo. Os ensaios demoram seis, sete semanas. Depois, no meu projeto, há tempo para estar em cena e para o espetáculo crescer e para fluir com o público. Há tempo para descobrir. Há tempo para errar. Há tempo para experimentar. E a arte tem que necessariamente passar pelo erro. E depois há esta experiência absolutamente incrível que é o agora. É agora. E essa responsabilização é um choque de adrenalina só comparável ao desporto, à alta competição. Nunca teve ambições de ter uma carreira internacional como ator?Tive, quando era mais novo. Sonhei com isso. Aliás, antes de ir para o conservatório tentei entrar em Londres numa escola e não consegui. E depois essa ideia foi sendo adiada, porque rapidamente o mercado português me deu a mão e me deu oportunidades que eu guardo e prezo até hoje. Sinto-me muito, muito agradecido e reconhecido pelo meu país me ter dado a oportunidade de me desenvolver enquanto artista. Às vezes penso, o que é que teria acontecido se eu tivesse ido lá para fora? Mas não trocaria nada do que tenho. Porque, efetivamente, aqui pude fazer muitas coisas muito diferenciadas, muitas responsabilidades. No estrangeiro seria sempre um estrangeiro, por melhor que fizesse. E podemos sempre especular que sucesso é que eu poderia ter alcançado. Mas, sinceramente, não me interessa, porque estou muito agradecido por aquilo que alcancei. .No ano em que faz dez anos, MAAT expõe Coleção de Arte da Fundação EDP.Peças históricas e raras da Bordallo Pinheiro vão a leilão