De Robert De Niro sempre vimos uma atitude política escancarada, com a devida ênfase pública. Aquando do primeiro mandato de Donald Trump, ele foi vocal no desprezo que alimentava pelo presidente dos Estados Unidos, e mesmo na altura em que decorreu o julgamento do magnata no caso Stormy Daniels, a sua voz fez-se ouvir à porta do tribunal de Nova Iorque, onde classificou de “palhaço” o homem que hoje está de novo sentado na Sala Oval, à frente dos destinos da América, e quiçá do mundo. Como é que um ator tão comprometido com a saúde política do seu país enverga o papel de um ex-presidente americano na minissérie que chega esta quinta-feira à Netflix? Assim à primeira vista, com semblante pesado, assertividade, sentido de honra e alguma desorientação mental (já lá vamos).Numa entrevista recente ao jornal britânico The Guardian, foi o próprio quem deu a entender que o seu interesse pelo projeto teve razões políticas... embora o contexto promocional deste Dia Zero não lhe permitisse desenvolver tais motivos. Seja como for, ficou latente na conversa que a sua personagem, não sendo Joe Biden, poderia conter algo desse ex-presidente, numa aceção de poder absolutamente contrária ao perfil de Trump: “Imaginei um presidente que seria confiável, bem-visto e que diria a verdade ao máximo dentro das suas possibilidades. Uma pessoa que tenta ser objetiva. Que não tem outra agenda senão fazer a coisa certa.”.De Niro compara "totalmente louco" Trump a personagem que fez em "Taxi Driver". Vamos então conhecer o herói de Zero Day, George Mullen, algures no curso da sua rotina: dá umas braçadas matinais na piscina, faz jogging com o cão e, na cozinha, recebe o briefing presidencial enquanto toma o pequeno-almoço. Ficamos também a saber que está em conversações para avançar com um livro de memórias. Mas esta reforma tranquila é abalada quando um ataque informático mergulha o país no caos – um caos que terá de ser gerido ao mesmo tempo que Mullen é chamado a liderar a investigação de tal evento com consequências devastadoras; ordem vinda da presidente dos EUA, interpretada por Angela Bassett em modo Kamala Harris (portanto, mais uma série que sonha com o que a realidade americana ainda não se atreveu a atestar).Vogando num mundo onde rumores se tornam factos e as teorias da conspiração imperam, Dia Zero constrói a atmosfera sufocante de um thriller político enquanto desenha o quadro dramático do seu protagonista, alguém que revela sintomas estranhos – ouve frequências radiofónicas que não existem, vê objetos e pessoas aparecerem e desaparecerem –, mas mantém a convicção de estar à altura da incumbência. Mesmo quando a filha (Lizzy Caplan), outra personalidade da política, acha que ele já não está em sintonia com as perceções do momento. O estado mental de Mullen pode, no entanto, não indiciar aquilo que o espectador suspeita...Os binóculos da ficçãoFeita à medida de Robert De Niro, ator que ainda não tinha dado o salto vigoroso para a televisão, a série criada por Eric Newman, ao lado de dois jornalistas – Michael S. Schmidt, do The New York Times, e Noah Oppenheim, ex-presidente da NBC –, retrata uma corrida contra o tempo que, para lá das esferas do poder, tenta medir o pulso à “América real”. Ao longo de seis episódios, com um sentido de urgência parecido ao de A Diplomata (outra série Netflix), Dia Zero poderá representar o início de um ano de “ficção a comentar o panorama”, tal como me pareceu ser o caso de Paradise (Disney+), a série em que os milionários são mesmo os donos disto tudo.Ainda que não sejam mencionados partidos políticos, e se mantenha alguma ambiguidade na linguagem, o permanente cansaço existencial no rosto de De Niro diz um volume de coisas. E serve aqui de contraponto perfeito à lógica da urgência, que tende a consumir tudo: Mullen está velho, mas a bússola moral não o deixa abrandar enquanto não resolver aquilo para que foi chamado. “Somos americanos. O que é que estamos a fazer? Devíamos apoiar-nos e entreajudar-nos”, diz esse ex-presidente num discurso espontâneo no meio da rua, quando uma multidão começa a hostilizar-se diante de uma operação de resgate. Continua assim, em referência aos ainda desconhecidos autores do ataque: “Não confiam no governo? Compreendo. Nem sempre chegou a todos. Mas isto não tem que ver com o governo, o 1% ou o que lhe quiserem chamar. É sobre alguém que nos odeia, que se opõe a tudo o que defendemos, tudo o que faz de nós o que somos”.É ver como De Niro brilha nestas palavras, que lhe saem, realmente, sem esforço. Como se estivesse apenas a dizer o que pensa, na pele de uma personagem à procura da decência perdida..'Oh, Canada'. Ser ou não ser herói, eis a questão .'Longe da Estrada'. Entre forças destrutivas e forças criadoras.'Flow - À Deriva'. Desenhos animados que chegam da Letónia