Deneuve regressa a Téchiné com amor incondicional

Os tempos que mudam num objeto cinematográfico com o cunho de André Téchiné. <em>O Adeus à Noite </em>tem Catherine Deneuve de novo a deslumbrar numa história sobre um jovem francês que decide radicalizar-se em plena França.
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Há que contrariar as coisas: numa altura em que o cinema de Téchiné deixou de ser acontecimento (o público que esgotava o Nimas em 1994 com Os Juncos Silvestres desapareceu), a chegada do algo ignorado (na Berlinale de 2019 passou completamente ao lado) O Adeus à Noite tem de ser precisamente isso, um acontecimento! Por muito que o cineasta francês não esteja no melhor momento da sua carreira, este não deixa de ser um objeto bastante digno e com uma Catherine Deneuve absolutamente insondável em versão avó.

Relato sobre ruturas entre gerações, esta é a história de um jovem francês tentado pela radicalização jiadista. Ele que regressa à quinta da sua avó, uma viúva empreendedora que será abalada pelo choque da decisão do neto. Pelo meio, há um eclipse e um diálogo com as cores e os sons da natureza. Aliás, como em muitos filmes de Téchiné, o peso campestre é uma personagem de pleno direito e essa marca é um dos encantos deste seu filme tão perturbante.

E a perturbação é a mesma que os irmãos Dardenne tinham mostrado em Le Jeune Ahmed (em breve com estreia comercial entre nós pela Lanterna de Pedra), onde se contava como um jovem de bom coração se tornava num inimigo da paz à medida que a sua radicalização religiosa o traía). Quer isto dizer que cineastas de uma geração mais veterana estão atentos a um pesadelo que nesta altura deixou de ter parangonas na imprensa. Mas em Téchiné o olhar de perturbação passa também por um confronto de ideias e de uma íntima perscrutação das energias da juventude, aqui sublimadas através da convicção de Alex (um bem competente Kacey Motett Klein, jovem revelado em Quando se tem 17 Anos, precisamente de Téchiné), alguém que deseja lutar na Síria pela causa islâmica a fim de reiterar uma pureza moral e espiritual e tornar-se num mártir.

Téchiné não gasta tempo em didatismos nem justificações das intenções de Alex, apenas observa e deixa estampados argumentos do Bem e do Mal no islamismo. E é por aí que tudo fica mais inquietante e movediço, sobretudo quando há coragem explícita para desmontar as células terroristas no seu interior. Por isso, nesse contraste de sol e beleza telúrica, esta noite que se despede toca mais fundo, mesmo quando o guião nem sempre é tão conciso como se poderia supor.

De alguma forma, a personagem da avó é o nosso barómetro e aí Deneuve é de uma contenção no domínio da magia. Uma Deneuve nos antípodas da Deneuve mais expansiva de Festa de Família (estreado no regresso dos cinemas após a pandemia), de Cédric Kahn. Aliás, quando filmada por Téchiné, Deneuve é sempre qualquer coisa de escarpa da insubmissão humana. Não é arriscado dizer que em A Minha Estação Preferida e O Local do Crime (ambos de Téchiné) estão alguns dos seus momentos mais vibrantes da sua fase "adulta".

Filme de desespero fortíssimo, L'Adieu a la Nuit é sobre aquilo que não é dito. Filma-se o radicalismo sem clichés nem constrangimentos. Téchiné continua a ter uma câmara com um tempo e uma força única de cinema em cada plano. Não está nada moda? Não faz mal...

*** Bom

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