A artista vai lançar, neste mês de dezembro, um novo disco, totalmente cantado em francês. É um projeto de enorme relevo cultural e algo que ela já desejava concretizar há algum tempo. A edição deste álbum coincide com a distinção recentemente atribuída pela República Francesa no âmbito da ordem das artes e das letras.Quando soube que ia ser agraciada, o que é que pensou na altura?Primeiro pensei, mas como? Se isto é mesmo de França ou é a embaixada francesa em Portugal? Houve uma espécie de negação. Nós atuamos no mundo inteiro e maioritariamente para estrangeiros. Ser reconhecida por outro país deixa-nos com algum orgulho, mas também com alguma estranheza, porque pensamos, como é que aqui no país ao lado alguém conhece tão bem o nosso trabalho e nos quer condecorar? Ainda por cima, eu nunca tive nenhuma condecoração em Portugal. É bonito perceber que a minha primeira condecoração vem de um país estrangeiro, que reconhece o meu trabalho.Esta condecoração foi o mote para o disco que vai ser lançado este mês, totalmente cantado em francês, ou é apenas uma coincidência? Não, por extraordinário que pareça. O meu álbum ainda não saiu, e ninguém tem conhecimento dele, porque foi guardado a sete chaves. Estou agora a divulgar a surpresa. É dos álbuns da minha carreira pelo qual eu tenho mais carinho. Mas é daquelas coincidências lindíssimas - ir lançar o álbum agora, e receber esta condecoração exatamente ao mesmo tempo.Porquê um disco em língua francesa? A língua francesa é a minha língua favorita do mundo. Depois, é uma língua que me acompanha desde muito nova, porque eu andei numa escola onde se falava maioritariamente o francês, muito mais do que o inglês. Mas foi um convite muito especial, que surgiu de um dos managers da Amália Rodrigues, que a acompanhou no início da sua carreira e que agora tem 80 anos. Viu um espetáculo meu em Paris, numa homenagem à Amália, e veio convidar-me, muito emocionado, a dizer que eu era a neta inesperada da Amália, foi a coisa mais incrível que alguém me podia ter dito.Este disco é só de fado ou tem outros estilos? Este disco são clássicos franceses cantados por uma fadista. Eu acho que é muito bonito, porque também a Amália Rodrigues cantava os clássicos franceses. Esta é a forma de interpretar o que é nosso, do sangue português e que está tão marcada no fado, este saudosismo, este sebastianismo que nós trazemos na nossa voz, na história, na ancestralidade do nosso país e da nossa cultura, e que se agarra nestas canções francesas e nestes poemas, nestas histórias. Porque, para mim, a música francesa são histórias que se contam, têm letras intermináveis. É contar estas histórias à maneira portuguesa, no fundo.Foi difícil entrar nessas histórias? Não, não foi muito difícil. Em termos de gosto foi uma alegria imensa, porque são músicas que eu também ouço há muito tempo e que adorei poder interpretá-las, agora também já com outra maturidade, obviamente. Mas é muito interessante perceber que o francês cantado foi talvez das línguas mais desafiantes para mim. Porque os franceses têm uma forma muito interessante de se sentir. Há um ralhar, uma coisa engraçada na tristeza deles, a nossa tristeza é uma tristeza que é muito de queixume, mais para dentro. O meu grande desafio foi a pronúncia, poder contar todas estas histórias com uma pronúncia minimamente correta, porque nisso também eu gosto de fazê-lo da melhor forma, mantendo, acima de tudo, o sentimento vivo, sem estar a pensar falta aqui isto, falta ali aquilo, e isso foi um desafio neste álbum.Trabalhou só com músicos franceses ou também com músicos portugueses? Trabalhei com um músico francês fantástico, um grande pianista, que aliás nos ajudou em todos os arranjos, foi ele quem também construiu os arranjos connosco, e que se uniu aos músicos de fado, porque a ideia também era trazer o fado mesmo para os clássicos da música francesa.E acha que, sendo a Cuca fadista, sendo uma artista que vai cantar em francês, pode aproximar os franceses mais ainda do fado? Eu acho que sim, que existe sem dúvida uma comunidade de portugueses imensa, mas os franceses também apreciam muito o nosso fado, assim como os holandeses, os alemães, os austríacos. Para os franceses é este sentido do fado que rompe todas as fronteiras e todas as línguas e que chega através, não só da energia, mas da própria língua deles. Portanto, o fado rompe as fronteiras. É uma canção que se diz que é de alma para alma, porque os estrangeiros a apreciam e comovem-se muito.Sei que está a pensar gravar um disco de fato tradicional. É verdade. O meu caminho foi ao contrário. Mais cedo ou mais tarde iria ter de ir à fonte, que é a minha grande paixão, na verdade. Eu sempre achei que realmente vinha mais na escola da Amália, cantei sempre mais os fados da Amália, não tanto os tradicionais. Não cabiam tão bem na minha voz. E, portanto, fui sempre seguindo os temas que foram feitos para Amália, a escola da Amália. Depois comecei a viajar muito, naturalmente fui bebendo de outros géneros musicais. E agora chegou uma altura da minha carreira em que decidi: quero mesmo gravar um álbum com fados tradicionais, dos mais antigos que existem, que são aqueles que mais me tocam e que eu já tenho vindo a cantar aos pouquinhos. Eu sou uma apaixonada por tradições, obviamente pela minha, mas também pelas tradições do mundo. Este meu álbum vai-se chamar Tradição, isso posso já revelar, porque esta é a minha paixão, é a tradição, a nossa tradição.Este seu novo álbum sai quando? Nós queremos que saia em março de 2026. Vamos gravá-lo agora, e sairá já no início do ano. E acha que vai precisar de convencer o seu público para a ouvir cantar neste estilo?Não, eu acho que o meu público também espera isto. O meu público é muito eclético? Eu chego a vários públicos, tanto às pessoas mais velhas, como a adolescentes, como a crianças, e então o que eu acho é que talvez a minha missão tenha sido conseguir ter uma estrutura para agora poder levar esta tradição aos mais jovens, porque há uma nova geração que segue a minha música, e muitos desta geração dizem-me que não gostavam de fado e ficaram a gostar mais. Quais são as vozes, ou os artistas, dentro e fora do fado, que atualmente mais a inspiram?Maria Bethânia, embora não seja do fado, é uma voz que me inspira muito. Do nosso fado posso dizer o Camané, que gosto mesmo muito e ouço muito. Eu costumo dizer que a maior parte dos artistas que eu ouço já partiram, porque eu gosto muito de Nat King Cole, Tony Bennett, Frank Sinatra.Quando precisa de se desligar do mundo, o que é que ouve? Gosto muito de música clássica. Agora tenho ouvido muita ópera, que é interessante, não é que ela não tenha feito parte sempre da minha vida. Tenho tido aulas de lírico e tem sido uma surpresa também, porque na verdade a minha professora, todos os meus professores, dizem que eu poderia ter sido uma grande cantora lírica, é algo que ninguém sabe, portanto eu só estou a usar uma parte da minha voz.Gostava de cantar uma ópera?Agora já tenho 40 anos, já não posso fazer uma carreira no lírico, mas quiçá um dia poder fazer uma ópera seria lindo, porque não? Qual foi a situação mais insólita que viveu num concerto ou numa digressão? Estávamos a fazer uma tournée de 15 espetáculos na Holanda e na Bélgica, e os meus músicos deixaram todos crescer a barba e eu não reparei. Naquele dia eles fizeram todos uns bigodes retorcidos antes de entrar no espetáculo, e quando eu entrei a cantar, de repente comecei a olhar para trás, e começo a ver um músico com um bigode, e depois começo a ver outro, e eu acho que estava tão cansada, que pensei: Ai meu Deus, será que estou a ver bem? Pensei que estava um pouco entre a realidade e o sonho, fiquei assim um bocado assustada. Só que eles estavam com um ar tão sério e comecei a rir-me, não aguentei. E depois comecei a pedir desculpa às pessoas.Qual foi o melhor conselho que recebeu de alguém do fado? Recebi muitos, mas um dos que mais guardo, é este, não ter medo de ser eu mesma, nunca ter medo e continuar a ter esta coragem para seguir o meu instinto, e continuar a escrever, continuar a compor. É normalmente o conselho que eu dou a todas as pessoas que começam a cantar e que às vezes perguntam como é que podem fazer para ter sucesso.Qual é o objeto que tem mais valor para si? Se calhar, um terço que o Papa Francisco me deu, abençoado. Levo-o muitas vezes comigo. Acho que esse é um dos grandes símbolos, mas vou tendo vários amuletos, claro. Tenho uma Nossa Senhora que foi roída pelo meu cão, mas que eu guardo religiosamente. Está sempre ao lado da minha cama também. Muitas vezes quando viajo ou quando vou fazer algo importante, levo-a comigo. É um grande amuleto. Mas, acima de tudo, o maior amuleto de todos é mesmo a minha fé, porque não há nenhum concerto que eu consiga fazer ou entrar em nenhum palco em que eu não me conecte com este divino. É agradecer este momento, mas também pedir para ser um bom instrumento. Eu acredito que os nossos dons são a nossa forma de levar amor ao mundo. Que eu não me esqueça disso, porque as pessoas não estão ali para me trazer algo a mim, sou eu que estou ali para levar algo às pessoas.Se pudesse convidar três pessoas para cantar consigo em conjunto, quem é que escolheria? Não podem ser mais do que três? Estou a brincar. Para cantarmos todos juntos, podia ser Freddie Mercury, Nat King Cole e Amália Rodrigues.