Depois de Reacher, a série que finalmente apresentou um protagonista à medida e altura do herói detectivesco dos livros de Lee Child, a Prime Video volta a apostar nos grandes sucessos literários do género policial dos nossos dias, debruçando-se agora sobre o não menos famoso Alex Cross, criação de James Patterson que construiu a sua legião de leitores ao longo de mais de 30 romances best-sellers, desde 1993. À semelhança do referido Jack Reacher, estamos no domínio dos “Sherlocks” musculados, figuras com cérebro e bíceps bem definidos, que usam as propriedades específicas da sua presença (incluindo sex appeal) para levar uma investigação a bom termo. No caso da nova série, Cross, já disponível na plataforma de streaming, o ator Aldis Hodge é a manifestação física desse perfil: alguém que intimida tanto pela análise rápida de suspeitos como por um fator de sedução mais ou menos verbalizado (mas sempre reconhecido pelas mulheres)..Para além de ser detetive da Polícia Metropolitana de Washington, DC, Alex Cross tem ainda uma especialização em psicologia forense. E como qualquer protagonista de policiais que se preze, convive com os seus próprios fantasmas à medida que avança nas investigações. Não por acaso, a série criada por Ben Watkins começa por dar-nos um vislumbre do dia em que a sua mulher apareceu morta, deixando um vazio e sentimento de culpa que, passado um ano, ainda lhe turvam a razoabilidade básica e o põem a ferver em pouca água... É por essa altura que as coisas se misturam neste universo, sem estarem necessariamente interligadas: se, por um lado, os sinais da tragédia do passado recente continuam a persegui-lo, por outro, há a hipótese muito concreta de um serial killer ser responsável por uma morte, no interior da comunidade afro-americana, que as autoridades querem despachar como suicídio ou overdose acidental..Também aí o detetive, juntamente com o seu companheiro de todas as provações laborais, John Sampson (Isaiah Mustafa), se torna o principal oponente de uma lógica burocrática e interesseira, procurando estabelecer que o princípio da verdade não se coaduna com o que dá jeito às chefias. E assim, esta primeira temporada de Cross (oito episódios, já com a segunda parte anunciada) anda à volta de um esforço pessoal para manter os padrões de lucidez que garantem à personagem o controlo do caso em cima da mesa, enquanto a família se ressente com o avivar do passado. A saber, Alex Cross tem dois filhos, ao cuidado da avó que vive lá em casa, e não se pode dar ao luxo de transferir para os miúdos a dor que ainda o corrói, e que interfere na página amorosa – sim, há um romance a dar os primeiros passos..Do cinema para a televisão.Carregando a responsabilidade de assumir uma figura já levada ao grande ecrã em duas interpretações de Morgan Freeman (Beijos que Matam e A Conspiração da Aranha), mais outra de Tyler Perry (Eu, Alex Cross), Aldis Hodge encaixa habilmente no modelo de thriller, ação e drama que define os episódios. Uma exigência natural do formato série, no sentido em que há aqui uma necessidade maior de consolidar a personagem. De resto, como se lê nas notas de produção, o ator teve um treino com detetives locais, de Washington, DC, e já era um apaixonado pela psicologia e comportamento humanos: “Gosto de ser capaz de entender a natureza da mente das pessoas, por que fazem o que fazem, o que motiva certas coisas”..Este não é um aspeto de somenos importância. Até porque parte da eficácia de Cross tem que ver com o estudo direto do assassino desta primeira temporada, a que Ryan Eggold dá expressão de requinte: um tipo que se considera um artista e está a criar uma bizarra “obra-prima”, replicando os serial killers que venera... Como? Bem, isso é preciso ver para crer, e Ben Watkins não faz mistério sobre os métodos do vilão. A ideia é, justamente, observar como funciona a cabeça deste psicopata moderno (ou melhor, como ele trabalha no interior da sua cave), antes de expor o mecanismo narrativo da surpresa..Outra característica da série é a sua vibração musical, um sentido de identidade negra que lhe confere originalidade q.b., enquanto se gere a batida fiel dos livros de James Patterson, que deve satisfazer os fãs. Pode não ser tão brilhante na execução como foi Reacher, mas, em matéria de drama policial, Cross é um objeto seguro e calibrado, que sabe conduzir a vulnerabilidade da personagem dentro dos limites justos da ação, sem dispensar, de quando em vez, o toque da masculinidade tóxica. Ninguém é perfeito.