Vincent Cassel, David Cronenberg e Diane Kruger: à conquista de Cannes! 
Vincent Cassel, David Cronenberg e Diane Kruger: à conquista de Cannes! LOIC VENANCE / AFP

Cronenberg. O cinema é um método perigoso

'The Shrouds' é mais um grande acontecimento no panorama competitivo do 77.º Festival de Cannes: o novo filme do canadiano David Cronenberg convoca-nos para uma viagem através das imagens, e da imaginação, do nosso mundo saturado de tecnologia.
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Por estes dias, o crítico de cinema receia enfrentar a pergunta mais simples que o leitor, atento e interessado, lhe poderá colocar: afinal de contas, perante os novos filmes propostos pelo Festival de Cannes, qual o estado dessa “coisa” a que damos o nome de cinema? Apesar de tudo, perante a eufórica estranheza de Megalopolis, de Francis Ford Coppola, podíamos ainda refugiar-nos na celebração de uma ambiguidade sugestiva: o cineasta de Apocalypse Now volta a propor-nos um exercício obsessivamente experimental… Agora, descobrindo The Shrouds, de David Cronenberg, convenhamos que as coisas se complicam - será que esta é “apenas” a crónica da nossa relação com a morte?

Digamos que sim, quanto mais não seja tendo em conta uma justificação biográfica: sabemos que o realizador canadiano foi preparando este filme como uma homenagem a sua mulher, Carolyn Zeifman, falecida em 2017. Mais do que isso: Karsh, figura central de The Shrouds, é um homem de negócios que, depois da morte da mulher, inventa uma “alternativa” tecnologicamente sofisticada às formas tradicionais de luto. Chama-se GraveTech (“grave” de sepultura) e permite estabelecer uma relação com as imagens dos corpos em decomposição dos defuntos bem amados - através de um ecrã controlado por telemóvel -, defuntos devidamente embrulhados nos respetivos sudários (“shrouds”).

Tudo isto tem como cenário principal o cemitério adquirido por Karsh, local paradoxalmente aprazível, para mais integrando um requintado restaurante. É certo que Vincent Cassel, intérprete de Karsh, apareceu em Cannes de cabelo muito curto e barba discreta, mas no filme a geometria do seu rosto e, em particular, a farta cabeleira branca transformam-no num gémeo incauto de … Cronenberg.

Memórias de Freud

Podemos tentar estabelecer uma pequena antologia dos “temas” que encontramos em The Shrouds e da sua presença regular na filmografia de Cronenberg. Lembramo-nos, por exemplo, do poder das imagens em Videodrome (1983). Ou das guerras entre o “real” e o “virtual” em eXistenZ (1999). Ou ainda dos corpos em transformação de Crimes do Futuro (2022). Ao mesmo tempo, semelhantes aproximações parecem não esgotar um assombramento que percorre todas as peripécias de The Shrouds, quanto mais não seja porque a memória da relação sexual de Karsh com a sua mulher Becca se “duplica” através de Terry, irmã de Becca - com as duas mulheres interpretadas por Diane Kruger, ecoando também os gémeos de Irmãos Inseparáveis (1988), ambos a cargo de Jeremy Irons.

Enfim, The Shrouds está longe de ser uma mera coleção de citações pessoais. O que mais importa é a conjugação de duas linhas de força, tão transparentes quanto perturbantes. Assim, em primeiro lugar, a relação sexual (ou, se quisermos ser românticos, a entrega amorosa) é algo que Karsh descobre como uma vertigem sem fim, em boa verdade sem satisfação redentora ou definitiva, persistindo para lá da certeza indizível da morte; depois, a demanda que a sexualidade envolve nunca é estranha (pelo menos no cinema de Cronenberg, entenda-se) a uma convivência mais ou menos consciente, metodicamente perversa, com os mais diversos aparatos tecnológicos.

Ao contemplar o corpo de Becca em decomposição, Karsh observa, de facto, o enigma interior do seu próprio desejo. Eis um imbróglio, convém não esquecer, registado num dos filmes mais mal amados de Cronenberg: Um Método Perigoso (2011), sobre as origens da psicanálise e, mais especificamente, as relações entre Sigmund Freud e Carl Jung.

Sexo & tecnologia

Tudo isto poderá fazer pensar num pesado filme de “tese”, com Cronenberg a fazer um inventário labiríntico da sua obra. É bem possível que essa ideia de inventário não tenha sido estranha ao próprio autor, argumentista e realizador. Mas seria inadequado tratar The Shrouds como um filme de citações, ainda menos de cenas “copiadas” do que quer que seja.

A palavra mais adequada para caracterizar a narrativa que nos envolve (como um sudário?) será outra: variações. Até mesmo no sentido musical, uma vez que Howard Shore volta a assinar uma admirável banda sonora para Cronenberg, a fazer lembrar as paisagens dilaceradas, mas infinitamente poéticas, da música de Crash (1996).

A intriga de The Shrouds, em particular através da personagem de Maury, o especialista do software do cemitério de Karsh, interpretado por Guy Pearce, vai-se enredando numa lógica de thriller que sugere uma conspiração internacional para o controlo da maquinaria da GraveTech. Se Cronenberg resiste a encerrar as várias linhas dramáticas do filme numa condensação racional, isso decorre do facto de The Shrouds ser também um filme sobre um tempo (tecnológico & sexual) em que o próprio conceito de humanidade está posto à prova através dos objetos que usamos e dos ecrãs que consumimos - ou em que somos consumidos.

O que, por fim, nos conduz ao parente mais próximo de The Shrouds. A saber: o primeiro, até agora único, romance de Cronenberg, justamente intitulado Consumed (ed. Scribner, Nova Iorque, 2014). Também aí corpos e máquinas cruzam-se e contaminam-se numa tragédia quotidiana que o cinema, perigosamente, nos devolve agora numa aliança de medo e deslumbramento,

Em Cannes

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