Dir-se-ia que tudo isso se joga através de um discreto, mas incisivo, prolongamento de um certo imaginário rural, quase uma “tradição” de algum cinema francês cujos sinais pontuam a obra de autores tão diversos como Marcel Pagnol (1895-1974) ou André Téchiné (n. 1943). Seja como for, Guiraudie não deixa de ser um aplicado individualista e caracterizar o seu universo criativo através dos “temas” de outros pode parecer uma desvalorização do seu próprio trabalho.Como descrever esta história insólita, por vezes francamente desconcertante, que começa com a chegada do jovem Jérémie (Félix Kysyl) à aldeia onde viveu para poder acompanhar o funeral do padeiro da terra, seu ex-patrão? Rapidamente compreendemos que a relação de Jérémie com o falecido envolvia uma componente passional que se vai enredar com uma cadeia de acontecimentos cada vez mais inesperados, num crescendo emocional em que o mistério dos laços afetivos (e sexuais) não pode ser separado do negrume da morte.Assistimos ao desenvolvimento de um sistema de relações em que o pressentimento da tragédia acontece em paralelo com interrogações cada vez mais desconcertantes. Assim, porque é que Vincent (Jean-Baptiste Durand), filho do padeiro, sugere que Jérémie está sexualmente interessado na sua mãe, agora viúva (Catherine Frot)? E que leva Jérémie a revelar ao vizinho Walter (David Ayala) que o deseja? Enfim, quem espera que o enigmático, e também muito “tradicional”, padre Philippe (Jacques Develay) dê a conhecer a Jérémie o que lhe vai na alma e... no corpo?Quanto mais prolongarmos a descrição destas peripécias, mais corremos o risco de ampliarmos os respetivos pormenores irónicos (por vezes, à beira do burlesco), passando ao lado da riqueza dramatúrgica do trabalho de Guiraudie e da sua dimensão de parábola filosófica. Misericórdia é mesmo um filme em que a palavra reencontra o valor primordial de emanação da verdade mais secreta de cada ser humano.Deparamos, por isso, com um gosto “teatral” dos diálogos, tanto mais fascinante quanto Guiraudie sabe sugerir que a palavra não existe como mero complemento das relações humanas - a palavra é (ou pode ser) o elemento mais radical dessas relações e até, no limite, da sua possibilidade. Há uma cena antológica que ilustra isso mesmo, quando o padre Philippe baralha a tradição e diz a Jérémie que precisa que ele o escute em confissão...Luz e coresNão é todos os dias que podemos descobrir atores a assumir essa luminosidade dos diálogos, afinal libertando o filme de qualquer espartilho formal (drama, comédia, etc.) com que possamos tentar enquadrá-lo. Aliás, na sua já citada ruralidade, Misericórdia existe como um objeto de elaborada ambiguidade face ao espetacular envolvimento dos elementos naturais.A direção fotográfica de Claire Mathon é, nesse aspeto, admirável, tratando as paisagens através de um realismo imediato que não exclui, antes reforça, a sugestão de detalhadas vinhetas bíblicas. Afinal de contas, ela fotografou também filmes como Retrato da Rapariga em Chamas (Céline Sciamma, 2019) ou Spencer (Pablo Larraín, 2021), a provar que há cumplicidades cinematográficas que existem através do caráter imponderável da luz e das cores. .Contra os horrores da 'Reality TV’.Um retrato do trabalho em tom realista.As estreias da semana - os sotaques e a histeria francesa