Joana Santos: o trabalho e as suas rotinas.
Joana Santos: o trabalho e as suas rotinas.D.R.

Um retrato do trabalho em tom realista

Joana Santos interpreta uma portuguesa a trabalhar na Escócia, vivendo uma rotina assombrada por uma solidão cada vez mais angustiada: 'On Falling' é a primeira longa-metragem Laura Carreira.
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Há filmes que, explicitamente ou não, remetem para memórias que nos ajudam a revisitar a pluralidade da história do cinema, das suas configurações temáticas até às respetivas matrizes narrativas. O seu labor envolve uma lição de humildade: o que surge como “atual” ou “moderno” pode, afinal, ser também um eco sugestivo de proezas narrativas mais ou menos remotas. Assim acontece com On Falling, produção luso-britânica escrita e dirigida por Laura Carreira (uma estreia na longa-metragem, distinguida com a Concha de Prata de Melhor Realização no Festival de San Sebastián).

Lembremos, a propósito, que a Revolução Industrial ajudou a consolidar um modelo de ficção cinematográfica em que, simbolicamente, todo o trabalho se confunde com o trabalho manual, ao mesmo tempo que, politicamente, o trabalhador manual existe como modelo de todos os trabalhadores. Daí nasceram filmes muito variados, na ambição e nos resultados, incluindo obras-primas como Tempos Modernos (1936), de Charlie Chaplin, cujo herói vive três traumas sintomáticos: a rotina do tempo laboral, a mecanização do corpo e, por fim, o esvaziamento da identidade social. Ora, justamente, On Falling talvez possa ser descrito como um eco remoto desse modelo universal de narrativa.

No centro de On Falling encontramos Aurora (Joana Santos), uma portuguesa a trabalhar na Escócia. As suas tarefas num centro de preparação e distribuição de encomendas ilustram as componentes temáticas atrás referidas, com um complemento que, obviamente, não existe em Chaplin: a sistemática relação de Aurora com o telemóvel parece corresponder ao mundo que lhe falta, acabando, inevitavelmente, por encerrá-la ainda mais numa angustiada solidão.

O filme assume-se, também ele, como uma rotina de situações que, por assim dizer, duplicam as rotinas de Aurora. Há nessa opção um desafio tanto mais frágil quanto o espectador é convocado, não tanto para um processo evolutivo da personagem (fosse ele qual fosse), mas mais para uma colagem de vinhetas realistas em que a repetição das ações (de tratamento das encomendas, das refeições, etc.) parece visar, mais que tudo, uma ambiência de raiz documental.

Daí a tentação de aproximar o filme de uma tradição realista britânica que liga o clássico John Grierson (1898-1972) a Ken Loach (n. 1936), sendo esta referência “confirmada” pelo facto de alguns dos produtores de On Falling estarem ligados a trabalhos recentes de Loach. Nesta perspetiva, estamos perante uma proposta que se pode inscrever numa curiosa dinâmica europeia (veja-se o francês Diamante Bruto, comentado aqui ao lado) que tem pontuado as últimas décadas. Tal dinâmica pode resumir-se numa pergunta urgente: como preservar um desejo realista de cinema sem ceder ao naturalismo simplista que circula pelo espaço televisivo?

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