Contra os horrores da 'Reality TV’
Muitas formas contemporâneas de fazer e pensar a televisão existem a partir de um silêncio ensurdecedor que quase ninguém (incluindo a classe política) arrisca questionar. A saber: através dos horrores e obscenidades da Reality TV - a começar pelo emblemático Big Brother -, a televisão (entenda-se: aquela maneira de fazer televisão) vai formatando as ideias e emoções dos seus espectadores, promovendo uma visão do mundo fundamentada naquilo que seria o realismo inquestionável do próprio dispositivo televisivo (condicionando também, precisamente, muitos aspetos da cena política). Quem resiste a tal avalancha de mediocridade? O cinema. Enfim, algum cinema: é o caso de Diamante Bruto, primeira longa-metragem assinada pela francesa Agathe Riedinger, uma das boas descobertas do Festival de Cannes de 2024.
Não é a primeira vez que o cinema observa os mecanismos de encenação, manipulação e desumanização da Reality TV - bastará recordar o exemplo modelar de Reality, do italiano Matteo Garrone, consagrado em 2012 com o Grande Prémio de Cannes.
Em Diamante Bruto, o efeito dramático é tanto mais forte quanto Riedinger (também autora do argumento) constrói o seu filme, não a partir de uma qualquer generalização “temática”, antes concentrando-se nas atribulações da jovem Liane, interpretada pela talentosa Malou Khebizi (outra estreante em longas-metragens).
Liane tem 19 anos, vive com a mãe e a irmã mais nova em Fréjus, na costa mediterrânica francesa (curiosamente, a pouco mais de 30km de Cannes). A sua existência está marcada por muitas limitações financeiras, oscilando entre a “tribo” das raparigas, em permanentes jogos de sedução/repulsa com os rapazes, e o mundo imaginário que descobre através da televisão e das aplicações do seu telemóvel... Quando surge a hipótese de se inscrever num programa de Reality TV (L’Île des Secrets), Liane começa a construir uma ficção delirante sobre as suas possibilidades de conquistar fama, sucesso e dinheiro...
Há em Diamante Bruto uma dimensão intimista tanto mais importante quanto o filme não se enreda em sermões “sociológicos” para apaziguar as boas consciências. Acontece que, da operação que faz para aumentar os seios até à celebração de uma sexualidade exuberante, supostamente libertadora, Liane trabalha para satisfazer essa “utopia” de se transformar num ser liberto de qualquer constrangimento humano, apenas vocacionado para ocupar o altar de coisa nenhuma que a Reality TV lhe oferece - em termos simbólicos, faz todo o sentido falar em “altar”, já que ela assume a sua transfiguração como um ritual sagrado. De que religião? A que promove a televisão como ditadura da sensibilidade humana.