Durante várias décadas, o chamado “filme de guerra” existiu como um género dedicado, sobretudo, a acontecimentos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). De Os Melhores Anos das Nossas Vidas (William Wyler, 1946) até à A Lista de Schindler (Steven Spielberg, 1993), nele se cruzaram sagas individuais e memórias coletivas a que o cinema emprestou consistência histórica, acrescentou leituras críticas ou ressonâncias mitológicas. Daí a atenção que merece a estreia nas salas de Nuremberga, filme de guerra atípico nos tempos que correm, um discreto ÓVNI nas rotinas de um mercado que há muito passou a privilegiar outros modelos de espetáculo.Escrito, produzido e realizado pelo americano James Vanderbilt, Nuremberga acaba por ser, no essencial, sobre o pós-guerra, centrando-se nos chamados Julgamentos de Nuremberga, realizados entre novembro de 1945 e outubro de 1946. Os 24 réus aí julgados tinham sido, todos eles, figuras centrais da máquina de guerra do regime nazi, direta ou indiretamente implicados na conceção da Solução Final para extermínio dos judeus - entre eles, Hermann Göring, sucessor designado de Adolf Hitler, e Rudolf Hess, vice-Führer do Partido Nacional Socialista.Organizado pela diplomacia de quatro nações vencedoras da guerra - EUA, União Soviética, França e Reino Unido -, o trabalho desenvolvido pelo Tribunal Internacional Militar, em Nuremberga, tem sido matéria abordada por produções cinematográficas e televisivas muito variadas. Curiosamente, uma das mais famosas - O Julgamento de Nuremberga (1961), produção/realização de Stanley Kramer com um elenco que inclui Spencer Tracy, Burt Lancaster, Maximilian Schell, Marlene Dietrich e Judy Garland - apresenta-se como uma evocação histórica “indireta”, já que tem como base um argumento estruturado a partir de personagens imaginárias.O filme de Vanderbilt relança a pergunta-chave: como representar os crimes nazis? Reencontramos as personagens verídicas, a começar por Robert H. Jackson (Michael Shannon), advogado, membro do Supremo Tribunal dos EUA, determinante na organização dos julgamentos em Nuremberga. Matéria nuclear são os encontros/diálogos de Göring (Russell Crowe, numa das suas melhores composições dos últimos anos) e Douglas Kelley (Rami Malek), psiquiatra do Exército americano convocado para avaliar o estado mental dos acusados.O que estava em jogo excedia, obviamente, a simples produção de um relatório médico. O processo jurídico desenvolvia-se numa dupla vertente: antes do mais, tratava-se de provar a implicação dos réus nos crimes do regime nazi; depois, era urgente dar a conhecer a amplitude desses crimes através de informações que, em grande parte, estavam ainda a ser conhecidas e inventariadas. As sessões entre Kelley e Göring evoluem, assim, através de uma perturbante ambiguidade. Ou seja: que diálogo é possível manter com um criminoso de guerra, agora num contexto em que a verdade dos factos emerge através de uma definição clara de vencedores e vencidos?O valor das palavrasO argumento de Nuremberga tem como base um livro do jornalista americano Jack El-Hai - The Nazi and the Psychiatrist (ed. PublicAffairs, Nova Iorque, 2014) -, de alguma maneira confirmando o interesse de Vanderbilt pelos poderes multifacetados, instáveis, por vezes perversos, das palavras. Com um trajeto singular como argumentista, incluindo uma colaboração com David Fincher, em 2007, no filme Zodiac, ele tinha no seu curriculum uma única realização, Truth/Verdade (2015), abordando a polémica que envolveu o jornalista Dan Rather (interpretado por Robert Redford) por causa de uma emissão do programa televisivo “60 Minutes” (CBS) em que foram citadas informações erradas sobre a vida militar do presidente George W. Bush. . No plano dramático, a tensão emocional de Nuremberga decorre do ziguezague entre aquilo que os protagonistas da guerra têm para dizer (ou ocultar) e as provas irrefutáveis dos horrores do Holocausto. Daí a perturbação inerente à sequência, no tribunal, em que Robert H. Jackson dá a ver imagens dos campos de concentração. Pertencem a um registo documental, Nazi Concentration and Prison Camps (1945), a que está ligado o cinema de Hollywood, uma vez que a sua realização é de George Stevens, com produção de John Ford - estão disponíveis, na íntegra, na Wikipedia, na página “Nuremberg trials”.