Num mar de filmes pesadões, com muita morte, desassossego e sombras, é com “alívio” que na seleção oficial do festival passa fora-de-competição o novo de Jon Watts, Lobos Solitários, com George Clooney e Brad Pitt, dois agentes de limpeza de crimes, um pouco como a personagem de Harvey Keitel em Pulp Fiction. E alívio porque, na verdade, trata-se de um dos divertimentos melhor confecionados de Hollywood em muito tempo. Uma comédia de ação em modo screwball com dois fixers a serem obrigados a trabalhar juntos, um para proteger uma procuradora-geral após uma noite de sexo com um rapaz com idade para ser seu filho, o outro para proteger o Hotel Delon, um cinco estrelas chiquíssimo de Nova Iorque. Pelo meio, há quatro pacotes de cocaína e uma confusão com a máfia croata e a albanesa. Uma noite longa que vai fazer com que os dois “wolfs” percebam que até funcionam juntos e que são mais parecidos do que imaginam. Watts está a modernizar uma ideia de reciclagem do Rat Pack, chegando-se mesmo a fazer um gigante piscar de olho a Sinatra….A insistência no escândalo da não estreia.Na conferência de imprensa no Casino do Lido há gente a mais e muitos jornalistas com os braços no ar. A última vez que Clooney e Pitt tinham estado nessa sala foi numa vergonhosa conferência de imprensa em 2008, a propósito de Destruir Depois de Ler, de Ethan e Joel Coen. Vergonhosa porque se falou de tudo menos de cinema e certas jornalistas fizeram perguntas de imprensa cor-de-rosa. Mas o elefante na sala era o embaraço pelo facto de Wolfs não vir a estrear em sala fora dos EUA, apenas no streaming, Appletv+. Clooney até brinca: “estamos em declínio!”. Mais a sério diz que ele e o Pitt estão aborrecidos com a decisão da Apple: “claro que é chato, mas a verdade é que estamos a tentar encontrar uma solução para podermos co-produzir com o streaming. A Amazon e a Apple precisam de distribuição, nós precisamos deles também. A própria Warner e a Sony também têm interesse, mas não é fácil, temos de ver como será melhor - a covid não veio ajudar”. E Brad Pitt ajuda: “as coisas são como são, a sorte é que muita gente vai ver o filme com a AppleTv+…”. “Ainda estamos a ver nesta indústria como isto pode ser bom para todos. Quando comecei só havia para aí umas 70 séries de televisão, agora são centenas. Os mais novos estão com mais sorte, é ótimo para uma nova geração. Eu e o Brad estamos mesmo a tentar encontrar uma solução, mas ainda agora estamos no começo. Por exemplo, o meu último filme, The Boys in the Boat, que era da MGM, foi uma deceção à última da hora quando decidiram que não teria distribuição internacional”..Ao longo deste encontro com a imprensa esfomeada de estrelas (de recordar que os atores grandes de Hollywood não estão em Veneza a dar entrevistas, coisa que continua a fazer correr muita tinta de protesto), Pitt é várias vezes referido como idoso pelo colega e amigo Clooney: “Não parece, mas sou bem mais novo do que ele. O Brad tem 74 anos! Temos muita sorte de estar aqui a trabalhar”. E é o mesmo Clooney que confessa irritação com as notícias de terem ganho 35 milhões cada um por este filme: “se isso fosse verdade era impossível que os filmes fossem feitos a partir de agora. Eu e o Brad baixámos até o nosso salário de forma a que o filme possa estrear nas salas, tentámos mesmo muito. Queríamos que Lobos Solitários fosse para as salas e nos EUA ainda vai estar em centenas delas”..Quando alguém menciona que foi Clooney a escrever para Biden desistir, ouve-se uma grande salva de palmas: “eu não vou ficar para a História, o que fica para a História é o mérito do presidente em ter sabido retirar-se. E, como podemos ver o mundo hoje, é muito complicado alguém prescindir do poder. Acredito que vamos viver um futuro feliz”, frisa..Sobre homens, sobre “gajos”.É mesmo pena que Lobos Solitários não possa ser visto nas salas na Europa e no resto do mundo. Um filme sobre homens temporariamente tontos. Uma comédia sobre masculinidade nada tóxica, filmada por um cineasta com veludo na câmara. E com Brad Pitt e George Clooney com aquela química de classe que só as grandes estrelas têm. E fica também um disclaimer: a perseguição dos dois ao jovem ator Austin Abrams é já o momento de coreografia mais delirante do cinema americano de 2024: mistura carros, meias, neve e nudez….A sublime ambição de Brady Corbert.O fim-de-semana foi realmente recompensador na Mostra. O melhor filme até ao momento terá sido o épico de Brady Corbert de 212 minutos, The Brutalist, uma história sobre o sonho americano através do percurso de um arquiteto húngaro que se torna famoso ao chegar a Filadélfia após ter sobrevivido à perseguição nazi. A Universal tem um objeto invulgar capaz de encetar uma discussão entre arquitetura e cinema. Um filme com ganas de ambicionar uma certa vibração de Orson Welles, em particular com pontos de contacto com Citizen Kane - O Mundo a Seus Pés. A sua projeção no festival teve direito a um raro aplauso da imprensa no genérico final. Adrien Brody, Felicity Jones e Guy Pearce são gigantes num elenco com outros nomes consagrados..Walter Salles e o filme “necessário”.Do Brasil também chegou um filme relevante, Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, pensado para sarar os traumas do Brasil com a sua longa ditadura militar através do relato da morte do engenheiro Rubens Paiva. O cineasta de Central do Brasil fez um filme comovente sem ser “derrama-lágrimas”, uma obra militante sem ser ativista, algo que é bem raro no atual panorama brasileiro atual. E é sobretudo um filme embalado pela sabedoria da enorme Fernanda Torres. No último terço, temos ainda a sua mãe, Fernanda Montenegro, numa pequena participação de arrepiar..Em Veneza