Clara Pinto Correia morreu aos 65 anos de idade, esta terça-feira, dia 9 de dezembro.
Clara Pinto Correia morreu aos 65 anos de idade, esta terça-feira, dia 9 de dezembro.Foto: Global Imagens

Clara Pinto Correia (1960-2025): Da biologia à literatura, a mulher com muitos talentos que não se deixou vencer

Com mais de 60 livros publicados, a escritora, professora e investigadora na área da Biologia estava afastada da academia, mas continuava a investigar e em janeiro será publicado o livro 'Tabu'. “Ela era a pessoa mais resiliente e mais positiva que eu possa ter conhecido”, diz a irmã Margarida Pinto Correia.
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Uma mulher inteligente, bonita e resiliente, com múltiplos talentos e que inspirou as pessoas a serem mais elas mesmas. Clara Pinto Correia foi assim até morrer, esta terça-feira, dia 9 de dezembro, aos 65 anos, em Estremoz, onde vivia desde há dois anos com Sebastião, o seu rafeiro alentejano. A bióloga e escritora estava afastada do meio académico, mas como diz ao DN uma das suas irmãs, Margarida Pinto Correia, “pode-se tirar a pessoa da academia, mas não se pode tirar a academia da pessoa”.

Em Portugal “ela não estava com nenhuma atividade académica, embora ela pessoalmente continuasse fervorosamente a estudar a História da Ciência e a história das partes da ciência que lhe interessavam, nomeadamente a infertilidade”, sublinha Margarida Pinto Correia. Tanto assim é que, em janeiro de 2026 será editado o livro Tabu, pela Editora Exclamação, sobre infertilidade. “Gostaria que as pessoas soubessem que a Clara tinha acabado de terminar um livro científico que eu e as minhas irmãs fazemos de questão de editar, e que, embora ela lhe tenha chamado Tabu, vamos todas, se não todos, pelo menos todas, querer muito que o livro seja bem espalhado, bem conhecido. É uma maneira de a mantermos sempre perto e viva, o rasto dela é incrível, a obra dela é incrível”.

Pode-se tirar a pessoa da academia, mas não se pode tirar a academia da pessoa.
Margarida Pinto Correia

Clara Pinto Correia vivia recolhida no Alentejo, mas a sua influência perdura. “O que eu tenho recebido hoje [ontem] de mensagens de pessoas que foram alunos ou colegas, sobretudo do lado científico - também do lado artístico -, a dizer como ela foi inspiradora, como ela abriu caminho, como ela libertou a hipótese de várias coisas, entre elas o de ser uma mulher inteligente, poderosa, bonita, e disso poder ser tudo uma mesma pessoa, é uma coisa que vai durar”, diz Margarida Pinto Correia.

Clara Pinto Correia publicou o seu último livro, 'Antares', em junho de 2024, pela Editora Exclamação.
Clara Pinto Correia publicou o seu último livro, 'Antares', em junho de 2024, pela Editora Exclamação.Foto: Global Imagens

Nuno Gomes foi uma dessas pessoas sobre quem Clara Pinto Correia deixou marca. O editor do seu último livro, Antares, lançado em junho de 2024, biólogo como ela, recorda que estava ele a iniciar o seu curso de Biologia quando Clara Pinto Correia já se encontrava em início de carreira com as suas “ideias frescas num Portugal cinzento”. Quis o destino que os seus caminhos se cruzassem há dois anos na Editora Exclamação. “Começou com o Antares e estávamos a preparar um outro livro quando ela faleceu”, diz o editor ao DN.

“Foi uma empatia imediata, tanto assim que nos quis deixar toda a sua bibliografia, para trabalharmos um dia, é um tema para o futuro. Mas a verdade é que ela, do ponto de vista criativo, estava muito longe de ter esgotado as ideias, porque estava a trabalhar em várias coisas ao mesmo tempo. Era uma mulher que estava na plenitude das suas funções intelectuais”, diz Nuno Gomes, recordando que ainda no sábado passado ela lhe enviou “um e-mail entusiasmada com o Tabu e com outros projetos”.

Mas a verdade é que ela, do ponto de vista criativo, estava muito longe de ter esgotado as ideias, porque estava a trabalhar em várias coisas ao mesmo tempo.
Nuno Gomes

Entre esses outros projetos estava a tradução para português da obra integral de Charles Darwin, vinte livros, revela Nuno Gomes. O primeiro, A Ascendência do Homem, com prefácio de Clara Pinto Correia, está previsto sair em março de 2026.

Clara Pinto Correia licenciou-se em Biologia, em 1984, pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e doutorou-se em Biologia Celular pelo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto. Prosseguiu uma carreira universitária e de investigação na área da Embriologia no Instituto Gulbenkian de Ciência e nos Estados Unidos, na Universidade de Nova Iorque, em Buffalo, na Universidade de Massachusetts Amherst e na Universidade de Harvard. Em 1996 regressou a Portugal e criou a licenciatura em Biologia e o mestrado em Biologia do Desenvolvimento na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, onde foi professora Catedrática.

É autora de múltiplos livros e artigos científicos, como Clonai e Multiplicai-vos, Os Bebés-Proveta ou O Ovário de Eva. Mas a sua escrita não se resumiu à ciência, tendo publicado livros de ficção. A estreia literária foi com o romance Agrião (1984) e o livro mais bem recebido pela crítica foi o Adeus, Princesa, de 1985, que foi adaptado ao cinema pelo realizador Jorge Paixão da Costa. Em coautoria com Mário de Carvalho escreveu E se tivesse a bondade de me dizer porquê?, e da sua obra fazem ainda parte Ponto Pé de Flor, Mais que Perfeito e, na literatura infantil, Quem Tem Medo Compra um Cão, A Minha Alma Está Parva e A Ilha dos Pássaros Doidos.

“Clara Pinto Correia foi um caso excecional na nossa geração de multiplicação dos talentos. Uma brilhante e frutuosa carreira científica não a impediu de escrever e publicar muitos e diversos livros, do romance à divulgação científica, da literatura infantil à ciência pura”, sublinha ao DN Luís Filipe Castro Mendes, diplomata, escritor e ex-ministro da Cultura, e um dos amigos da escritora até ao fim.

“Foi também uma ativa e interveniente jornalista. Tudo isto faria Deus perguntar: ‘Que fizeste dos talentos que te dei?’, mas mais de sessenta livros publicados, um doutoramento no Porto, um post doc em Amherst, vários projetos de investigação em Portugal e nos Estados Unidos, nomeadamente com cientistas da craveira de um Stephen Jay Gould e de um James Robl, respondem à hipotética pergunta de Deus com uma obra extensa, tão múltipla e polivalente como a sua autora, mas sempre de grande consistência e inteligência”, acrescenta.

Muito antes de se falar em ‘cancelamentos’, vimos como em Portugal foi desqualificada ante a opinião pública a figura de Clara Pinto Correia, por um delito, venial e superficial, de plágio jornalístico, que nada representava face à solidez e grandeza da sua obra.
Luís Filipe Castro Mendes

Clara Pinto Correia foi também apresentadora de programas de divulgação científica e cultural na rádio e televisão, e cronista, tendo assinado a coluna semanal A Deriva dos Continentes, na revista Visão, até fevereiro de 2003. A colaboração viria a ser suspensa sob a acusação de plágio de dois artigos da revista The New Yorker. A escritora justificou o sucedido com cansaço e o seu método de trabalho, negando intenção de copiar. Em 2010 viu-se envolvida noutra polémica, com a exposição Sexpressions, do seu terceiro marido, Pedro Palma, com fotografias de Clara Pinto Correia em êxtase sexual. Estes acontecimentos tiveram impacto na sua vida profissional e pública.

“Muito antes de se falar em ‘cancelamentos’, vimos como em Portugal foi desqualificada ante a opinião pública a figura de Clara Pinto Correia, por um delito, venial e superficial, de plágio jornalístico, que nada representava face à solidez e grandeza da sua obra. Hoje saudamos a sua memória, mas quantos de nós lhe virámos as costas?”, pergunta Luís Filipe Castro Mendes, que assina o prefácio do livro Tabu.

Numa entrevista ao programa Prova Oral de Fernando Alvim, na Antena3, em março deste ano, Clara Pinto Correia revelou que na sequência das fotografias de Sexpressions, foi posta fora da Universidade e não arranjava trabalho em lado nenhum. Não foi um cancelamento, "foi pior, foi um funeral", disse Clara Pinto Correia nessa entrevista, revelando que foi várias vezes confrontada com pessoas que pensavam que ela tinha morrido. Aconteceu, por exemplo, na Feira do Livro onde foi apresentar o seu livro Antares.

Falou em "boicotes muito ativos" ao seu trabalho, por exemplo, em relação ao livro Fear, Wonder, and Science in the New Age of Reproductive Biotechnology, escrito em parceria com Scott Gilbert e publicado pela Columbia University Press em 2017. Traduzido para várias línguas, "em Portugal foi varrido para debaixo do tapete, não se ouviu uma palavra sobre o livro", lamentou Clara Pinto Correia.

Ela tinha algumas fragilidades de saúde, mas estava bem e estava num momento de esperança
Margarida Pinto Correia

“É verdade que foi muito maltratada nos últimos anos em Portugal, muito ignorada, muito ostracizada, mas ela era a pessoa mais resiliente e mais positiva que eu posso ter conhecido, era mesmo muito positiva”, lembra Margarida Pinto Correia. “Ela tinha uma assinatura no e-mail incrível, que eu sempre achei o máximo, que era ‘this too shall pass, says the man under the train’. Era a ironia que ela punha em tudo, era o prazer em rir da vida e com a vida.”

Margarida Pinto Correia diz que a morte da sua irmã foi inesperada e o corpo será autopsiado. “Ela tinha algumas fragilidades de saúde, mas estava bem e estava num momento de esperança”, diz. “Apanhou-nos assim em voo, que era como ela estava sempre, porque mesmo quando esteve mais em baixo de saúde, mesmo quando esteve mais em baixo de amores, mesmo quando esteve mais em baixo pela maneira como Portugal a tratava, ela ria-se da vida e tinha esse humor incrível, às vezes cáustico e doloroso, mas sempre presente e sempre também muito coquete, muito a querer cuidar-se, muito a querer aparecer da sua maneira, que era muito peculiar, ela era um bocadinho excêntrica”.

Com Susete Henriques e Carlos Nogueira

Clara Pinto Correia morreu aos 65 anos de idade, esta terça-feira, dia 9 de dezembro.
Morreu a escritora Clara Pinto Correia aos 65 anos. "Não deixou nunca ninguém indiferente", referiu PR
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