O menos que se pode dizer de Chris Marker (1921-2012) é que não é possível fazer a história do documentarismo cinematográfico sem ter em conta, não apenas a sua filmografia, mas também o modo como nela se discute a própria noção de documentário. A partir deste sábado, a Cinemateca dá uma preciosa ajuda para o conhecimento do seu imenso legado: uma retrospetiva “que se pretende integral”, prolongando-se pelo mês de dezembro, em colaboração com a 25.ª edição da Festa do Cinema Francês..A sua identidade criativa é indissociável do contexto de gestação e afirmação da Nova Vaga francesa, desde logo porque se estreou em 1953 com a curta-metragem Les Statues Meurent Aussi, uma reflexão sobre a arte africana, realizada em colaboração com Alain Resnais (cuja primeira longa-metragem, Hiroshima, Meu Amor, surgiria seis anos mais tarde). Nessa experiência inaugural, a abordagem temática decorre já de um ponto de vista multifacetado, cruzando as considerações de natureza estética com a análise das convulsões do colonialismo..A sua inscrição histórica, e também mítica, como personalidade da Nova Vaga iria resultar de outra curta-metragem, La Jetée (1962), filme de cerca de meia hora que continua a ser um excelente ponto de partida para discutirmos as especificidades do olhar documental. Até porque La Jetée (o título refere-se ao grande paredão do aeroporto de Orly) é também uma parábola de ficção científica, situada num futuro devastado pela Terceira Guerra Mundial..O continuado fascínio de La Jetée começa na raridade do seu conceito narrativo. Trata-se de uma “ação” contada através de fotografias, o que, além do mais, reflete também o paralelismo entre a realização de filmes e o registo de imagens fotográficas que, ao longo de seis décadas, pontua todas as fases da carreira de Marker. Verdadeiro objeto de culto para várias gerações de criadores, La Jetée surge citado em produções tão diversas como o teledisco de uma canção de David Bowie, Jump They Say (1993), realizado por Mark Romanek, ou a longa-metragem apocalíptica 12 Macacos (1995), de Terry Gilliam..De forma porventura irónica, afinal objetiva, podemos dizer que há no labor de Marker o espírito, a prática e a teoria de um nómada do cinema. Isto porque, desde muito cedo, os seus filmes resultam de experiências vividas em contextos tão variados quanto distantes entre si. Para nos ficarmos por referências dos anos 60/70, lembremos que é nesse período que ele assina títulos como Le Joli Mai (1963), crónica parisiense “paralela” aos filmes documentais que Jean Rouch estava a realizar, Le Mistère Koumiko (1965), sinalizando o seu crescente interesse pelo Japão, e Le Fond de l’Air Est Rouge (1977), painel de reflexão sobre os movimentos revolucionários que marcaram aquela época..Uma visão vanguardista.La Jetée (1962): fazer cinema a partir de fotografias..Nada disto é estranho a um desejo paradoxal que se “materializa” na escrita do próprio Marker. Ele é um observador militante que vai publicando com regularidade ensaios críticos sobre cinema ou ligados à sua atividade fotográfica - recorde-se o exemplo modelar do álbum fotográfico Le Dépays (1982). Ao mesmo tempo, alguns dos seus filmes transfiguram-se em deambulações filosóficas que celebram a acutilância da visão documental, sem menosprezar a beleza específica das ficções: o admirável Sans Soleil (1982), de novo fascinado por muitos elementos da cultura japonesa, pode servir de símbolo dessa postura criativa que, em última instância, discute e supera as fronteiras convencionais entre a arte de documentar e o prazer de contar histórias..A pluralidade dos interesses de Marker levou-o também a retratar outro artistas, incluindo o seu amigo Yves Montand (La Solitude du Chanteur de Fond, 1974), o cineasta japonês Akira Kurosawa durante a rodagem de Ran - Os Senhores da Guerra (A.K., 1985), ou ainda o russo Andrei Tarkovski numa produção para a série televisiva “Cinéma de Notre Temps” (Une Journée d’Andrei Arsenevitch, 1999)..Desde muito cedo, a partir de finais da década de 1970, aliás a par do que estava a acontecer com Jean-Luc Godard, o gosto experimental de Marker motivou também o seu interesse pelas tecnologias audiovisuais emergentes. Das instalações multimedia até à pesquisa no interior dos novos universos virtuais (incluindo o “Second Life”), o seu trabalho distingue-se por um incansável desejo vanguardista - o que, provavelmente, o mantém à frente do presente em que o podemos redescobrir.