Numa das primeiras cenas do filme Bernadette – A Mulher do Presidente, Bernadette Chirac (magistralmente interpretada por Catherine Deneuve) vagueia no salão onde se comemora o triunfo do marido, Jacques Chirac (Michel Vuillermoz), nas presidenciais francesas de 1995. Sensível à exuberância do momento, deambula pelo grupo de políticos e assessores que celebram a vitória, indo colocar-se ao lado do novo Presidente que, numa varanda, braços no ar, agradece a uma ruidosa multidão... Quando a vê, Chirac, meio preocupado, meio incomodado, diz-lhe: “O que é que está aí a fazer, Bernadette? Ainda vai cair, tenha cuidado!”Está dado o tom da primeira longa-metragem para cinema realizada por Léa Domenach (nascida em Paris, em 1983). Ou melhor: a combinação de tons. Por um lado, estamos perante personagens verídicas de uma época específica da história de França e das atribulações da sua cena política; ao mesmo tempo, por outro lado, há uma premonição de comédia, potencialmente burlesca, que faz com que este não seja um filme de “reconstituição histórica”, antes um singelo e delicioso conto moral sobre as aventuras de uma mulher num cenário político comandado por homens.Se dúvidas houver sobre o facto de Bernadette ser um projeto alheio ao maniqueísmo das “reconstituições” típicas dos mais medíocres telefilmes, os momentos de abertura do filme de Domenach são esclarecedores. E não apenas porque há uma legenda informativa: “Esta história é livremente inspirada na vida de Bernadette Chirac.” Também porque esse texto é cantado por um coro que ocupa uma zona da igreja onde, poucos momentos depois, Bernadette vai entrar para se dirigir ao confessionário... Mais do que isso: a banda sonora original, composta por Anne-Sophie Versnaeyen, recorre várias vezes ao mesmo coro (sem qualquer justificação realista!) como pontuação irónica das peripécias da acção. Nesta perspetiva, poderá dizer-se que Bernadette é uma narrativa a meio caminho entre a comédia e a opereta.Assistimos, afinal, à deliciosa aventura da educação e, em grande parte, autoeducação de Bernadette Chirac nos labirintos nem sempre recomendáveis dos jogos políticos. Daí a importância, e também o irresistível humor, da personagem verídica de Bernard Niquet (Denis Podalydès), o conselheiro de imagem da primeira dama em quem não podemos deixar de reconhecer uma contundente caricatura dos especialistas de marketing que, para o melhor e para o pior, passaram a circular pelos bastidores da política.Aliás, o filme integra alguns sugestivos detalhes políticos, nomeadamente nas cenas que antecedem as eleições de 2002, quando Chirac foi eleito para um segundo mandato. Assim, contra a opinião de todos os conselheiros presidenciais, Bernadette chama a atenção para o facto de o adversário mais perigoso não ser o socialista Lionel Jospin, mas sim o candidato da Frente Nacional, Jean-Marie Le Pen. Isto sem esquecer o seu desprezo militante por Nicolas Sarkozy, sucessor de Chirac...Mulheres e homensBernadette surgiu nas salas de França a 4 de outubro de 2023, dir-se-ia que para participar na celebração do 80º aniversário de Deneuve (no dia 22 do mesmo mês). Apesar do relativo atraso com que chega aos ecrãs portugueses, importa sublinhar o facto de estarmos perante um curioso exemplo de uma tradição de comédia que, para lá do seu hábil humor e da excelência dos seus intérpretes, sabe manter uma calculada relação crítica com a história colectiva e, neste caso, em particular, com os sobressaltos da política.Numa entrevista ao Paris Match (22 out. 2023), Deneuve sublinhou isso mesmo ao lembrar que “a vida de Bernadette Chirac assemelha-se à de muitas mulheres que, apesar de terem uma educação semelhante à dos maridos, acabam por se colocar de lado, deixando o protagonismo para eles.” Afinal de contas, sem simbolismos fáceis nem demonizações moralistas, a Bernadette encenada por Domenach é uma genuína feminista.Na intimidade da arte fotográfica.Um “western musical” em Trás-os-Montes