QUERER (TVCine Edition e TVCine+)Temos notado nos últimos anos um acréscimo de qualidade na produção espanhola, quer no cinema quer na televisão. Só de estreias dos canais TVCine em meses recentes, saltam à vista dois exemplos fulgurantes de séries: Os Anos Novos, de Rodrigo Sorogoyen, belíssima e dorida crónica amorosa narrada ao longo de 10 anos, e La Ruta – Conquistar a Noite, de Borja Soler e Robert Martín Maiztegui, um retrato vívido da juventude no centro do movimento musical e notívago de Valência das décadas de 80-90, Ruta Destroy. Ora, é precisamente o canal TVCine Edition que recebe, hoje (22h10), uma nova minissérie a comprovar esta vitalidade vinda de Espanha. Chama-se Querer, e em apenas quatro episódios explora o caso de uma denúncia de violação contínua.Quase sem recurso a bengalas dramáticas, como seja uma banda sonora manipulativa ou cenas explícitas de violência, Querer é uma peça de contenção ntável. Seguimos Miren (Nagore Aranburu), uma mulher de meia-idade que, pouco depois de ter ido à polícia, acompanhada de uma advogada, para denunciar o abuso sexual continuado do homem com quem está casada há 30 anos, abandona o lar furtivamente, deixando um bife a queimar na grelha...Esta sequência inicial, muito concentrada nos gestos mudos de Miren, e numa mudança de atitude que estamos ainda a tentar perceber, ecoa em toda a série, na medida em que é essa coragem da fuga que desenha o “renascimento” da personagem. A coisa só se complica quando os dois filhos – um estudante, o outro pai de família – tomam conhecimento do seu ato, com o mais velho a mostrar-se incrédulo perante a ideia de a mãe acusar o pai de violação... quando são marido e mulher.Uma das marcas da sensibilidade de Querer passa por esse terror de explicar aos outros aquilo que a fachada de um casamento pode ter escondido ao longo de demasiado tempo, e será na reação diferenciada de ambos os filhos de Miren que se trabalham aqui os reflexos muitas vezes ocultos na personalidade, para além dos equívocos que hoje em dia fazem confundir o feminismo com uma causa “contra os homens”. Eis a prova de que é possível estudar a dor acumulada de uma mulher sem incorrer num retrato de purificação feminina, antes observando o quadro específico em que se desenvolveu esta forma de violência, ou comportamento abusivo tolerado em nome do bem-estar familiar. Assinado por Alauda Ruiz de Azúa, Querer é um drama seco, bem estruturado, que procura tornar legíveis as emoções de uma história baseada num caso verídico. Os resultados são francamente positivos.MUDTOWN (Filmin) Ambientada no País de Gales, de onde não nos chega com particular frequência qualquer tipo de ficção televisiva, Mudtown é do melhor que tem estreado recentemente na plataforma Filmin, em matéria de séries. Um thriller judicial que firma o olhar sobre uma juíza, Claire Jones (Erin Richards), acompanhando os seus casos diários em tribunal, enquanto outro caso de polícia se avoluma dentro das quatro paredes da sua própria casa. Ou seja: a filha adolescente ter-se-á envolvido com más companhias, praticado atos ilícitos, e é possível que a balança da justiça nas mãos desta mulher venha a ser testada de maneira excruciante..Com seis episódios e uma narrativa de feição comunitária, composta de personagens secundárias que fortalecem o retrato das relações locais, a série de Hannah Daniel e Georgia Lee constrói uma teia complexa, não só a partir do presente, mas também do passado, que se insinua quando um gangster estilo “Tony Soprano de Newport” vem dificultar ainda mais o dilema moral da magistrada.De resto, a dinâmica dos episódios tem muito que ver com a ligação entre a rua e a sala de tribunal, o domínio da profissão e a arena pessoal, a lei e o coração de mãe, tudo isto numa abordagem prática da coreografia criminosa local, e dos acontecimentos quotidianos.Igualmente curioso é que seja aquele dito comum – “não julgar o livro pela capa” – um dos primeiros conselhos que Claire dá a uma jovem juíza sob a sua orientação, defendendo ela a ideia de que “toda a gente tem uma história”. A observação revela-se irónica, porque neste contexto convém mesmo julgar as pessoas pela clareza da aparência.