A abertura oficial do 78.º Festival de Cannes, ontem ao fim da tarde, apresentava como trunfo prévio a apresentação extra-competição de uma primeira obra, Partir un Jour, da francesa Amélie Bonnin. O certo é que a cerimónia, apresentada por Laurent Lafitte (ator da Comédie Française cujo último filme estreado nos ecrãs portugueses foi O Conde de Monte Cristo), envolveu também um desafio logístico, já que, para lá da transmissão na France 2 e na plataforma gratuita da FranceTV, foi também seguida, em direto, em nada mais nada menos que 382 salas de cinema espalhadas por toda a França. A mensagem não poderia ser mais clara: neste mundo de plataformas e outras alternativas para ver filmes, é importante não abdicar da defesa económica e simbólica, numa palavra, cultural, das salas escuras como lugar insubstituível da vida dos filmes. A avalanche de estrelas que passaram pela passadeira vermelha — incluindo os membros do júri presidido por Juliette Binoche e Robert De Niro, consagrado com uma Palma de Ouro honorária, entregue por Leonardo DiCaprio — bastaria para sublinhar o respetivo trabalho como um elemento visceral, de uma só vez profissional e mitológico, da vida do cinema. E também o seu poder para enunciar e celebrar a essência dos valores humanistas, como referiu Binoche, evocando a morte trágica da fotojornalista Fatma Hassona, em Gaza, há poucas semanas, na sequência de um bombardeamento do exército israelita. Aliás, de alguma maneira, o próprio De Niro prolongou o discurso da presidente do júri, denunciando os ataques contra as práticas artísticas inerentes às políticas de Donald Trump. Escusado será acrescentar que a abertura com uma primeira obra (facto inédito em Cannes) acrescentava a tudo isto uma outra mensagem, afinal há muito inscrita nas linhas mestras do festival: a continuada atenção aos filmes de novos cineastas de todas as geografias e culturas. O mínimo que se pode dizer é que a novidade que é o trabalho de Amélie Bonnin revela laços obviamente muito pensados, e também muito subtis, com o legado do “velho” cinema... E não deixa de ser curioso referir que este Partir un Jour tem qualquer coisa de obsessivo na trajetória de Bonnin, já que se trata de um “prolongamento” de uma curta-metragem, com o mesmo título, que ela realizou em 2021 (tendo-lhe valido o César de melhor curta de ficção). Ainda assim, a palavra “velho” é equívoca, uma vez que o filme de Bonnin não pode deixar de ser aproximado da herança musical, eternamente juvenil, de Jacques Demy (1931-1990), um dos mestres da Nova Vaga francesa. Dito de forma esquemática, Partir un Jour é um melodrama centrado em Cécile (Juliette Armanet, brilhante) na personagem relativamente jovem de uma “chef” de cozinha que se tornou uma estrela através da televisão, sendo a ação pontuada por canções que, de alguma maneira, explicitam e desenvolvem as emoções de tudo o que está em jogo... A memória de Demy está lá, mas não em tom copista, até porque Bonnin utiliza as matérias musicais em ambientes marcados por um realismo à flor da pele — e a sua câmara bamboleante sabe manter-se “colada” às vibrações dos rostos e dos corpos. .Chaplin aqui e agora Entretanto, Cannes Classics começou em grande, com a nova e magnífica cópia restaurada de A Quimera do Ouro (1925), de Charlie Chaplin, confirmando que esta é uma secção do festival que está longe de se limitar a uma evocação nostálgica de filmes “antigos”, correspondendo, isso sim, a uma diretriz cada vez importante na (e para a) cultura cinéfila. A saber: o restauro dos clássicos como tarefa essencial de preservação da memória, logo de informação e formação de novos públicos. Na sua apresentação, o delegado geral de Cannes, Thierry Frémaux, pediu mesmo que os espectadores que não se acanhassem e levantassem um braço se nunca tivessem visto a obra-prima de Chaplin — não será exagero dizer que uma boa metade da sala respondeu afirmativamente... O vagabundo interpretado por Chaplin parte, desta vez, para as paisagens geladas do Alaska, seduzido pela hipótese de descobrir um filão de ouro e passar a viver como um milionário... A lógica de parábola moral obviamente não se perdeu (as atribulações do nosso presente parecem mesmo reforçar tal lógica), mas será interessante recordar que este é já um filme de Chaplin em que as componentes primitivas do burlesco, não estando ausentes, surgem cada vez mais entrelaçadas com o seu gosto pelo melodrama. A completar um século de existência, a nova cópia A Quimera do Ouro será lançada em salas de muitos países — espera-se e deseja-se que Portugal não fique fora de tal acontecimento. Em Cannes.Robert De Niro apela a defesa com "paixão" da liberdade dos EUA face a “presidente inculto”