No seu livro Submersos escreve: “Perdemos a noite. Os ecrãs chegaram e com eles a conexão permanente.” Perdemos a nossa capacidade de descansar, de não fazer nada? O tema que me interessa não é, de todo, a tecnologia, são as nossas vidas. E as nossas vidas, individuais e coletivas, mudaram com a tecnologia, porque passamos quatro, cinco, seis, sete horas por dia a olhar para o ecrã do telemóvel. Ocupa-nos quase um terço do tempo acordados. E, mentalmente, ocupa-nos quase a totalidade do tempo acordados. E até nos ocupa uma parte do tempo em que era suposto estarmos a dormir. A sensação que temos é a de estarmos em vigília permanente, de nunca estarmos em paz, de nunca estarmos desocupados. O que os ingleses chamam daydreaming já não acontece. Como nos aborrecermos se estão constantemente a chegar-nos solicitações que nos impedem de sermos… humanos? Somos a máquina que responde constantemente à máquina - já não estamos desocupados, somos incapazes de não fazer nada. É um sentimento que exploro nos meus últimos três livros. Neste, Submersos, abordo a ideia de este sentimento nos cansar. Por isso falo da noite. A sensação geral é a de sermos engolidos. E estamos cansados, porque nunca estamos parados ou a divagar.Nunca desligamos porque cada vez mais há a pressão para estarmos sempre ligados, para termos de responder de imediato a todas as solicitações? É esse o paradoxo. No início, há 20, 25 anos, quando comecei a escrever sobre estes temas, tínhamos uma janela mágica que nos dava acesso a tudo. O que nos deu uma impressão de riqueza extraordinária. Mas o que percebemos mais tarde, e escrevo-o no livro, é que passar tempo à procura de qualquer coisa, ou mesmo não a encontrar, não era uma pobreza, era uma forma de riqueza. Procurar, não encontrar, passar tempo à procura, era algo que nos construía a nós próprios. Hoje o que acontece é que não só temos acesso a tudo, como temos acesso a tudo imediatamente. No entanto, houve algo que se perdeu. Pior, temos acesso a tudo antes mesmo de termos procurado. Esta inversão significa que em vez de sentirmos este ecrã como um acesso a tudo, uma espécie de tapete mágico que nos faria voar em quase todos os universos, em todos os conhecimentos, em todas as informações, cada vez mais nos sentimos invadidos por esta tela. Em vez de ser uma porta, tornou-se algo que nos invade permanentemente. E não é uma simples metáfora, pois em média recebemos entre 95 e 100 notificações por dia, em que a ferramenta nos lembra para lhe prestarmos atenção. Faz-me lembrar quando estamos no carro com crianças pequenas que a cada cinco segundos perguntam “quando é que chegamos?”. Agora temos um telefone que está constantemente a dizer: presta-me atenção, presta-me atenção, presta-me atenção.Os adolescentes e jovens de hoje parecem incapazes de se aborrecer, de não fazer nada. Que adultos de amanhã é que andamos a criar? O que aconteceu do ponto de vista geracional é uma estranha inversão. A minha geração teve de aprender duas coisas, velocidade ou imediatismo, e o que chamamos de multitarefa, ou seja, fazer várias coisas ao mesmo tempo. Para nós, parece extremamente violento. A nova geração tem de fazer o contrário, tem de aprender a ser lenta, tem de aprender a monotarefa, que é concentrar-se em alguma coisa. Ambas as gerações têm de aprender coisas que não são nada simples. Mas se formos um pouco além disso, e esta é toda a primeira parte do livro Submersos, o que estamos a perder - tanto a geração jovem, como a geração velha - são duas coisas que me parecem extremamente importantes: a primeira é encontrar coisas que não procuramos, ou seja, a possibilidade de um encontro inesperado, que pode ser com um livro, com uma obra, com uma música, com uma pessoa, etc. É, num determinado momento, encontrar algo que não procurava e isso mudar a sua vida. E a outra coisa que estamos a perder é a possibilidade de nunca encontrarmos o que procuramos. Faço parte de uma geração que podia esperar quatro ou cinco meses antes de ver um filme, do qual tínhamos ouvido falar, tínhamos lido nos jornais, e por isso fantasiávamos com o filme antes mesmo de o ter visto. Havia uma construção intelectual incrível. Essas são as duas coisas que estamos a perder porque o universo digital, a tecnologia, é um universo de cálculo onde isso são erros. Quando comecei, há 27 anos, tínhamos esse jogo em que pesquisamos alguma coisa no Google para ver se não havia resultados.Hoje há sempre resultados… Há sempre resultados. Mas na altura o objetivo era o Google dizer “desculpe, não foram encontrados resultados”. Hoje não acontece, porque no sistema este era um erro. Se voltarmos à forma como podemos perceber a revolução digital, do ponto de vista das nossas vidas, temos três períodos que podem ser distinguidos, ou que se acumulam. O primeiro período, de 1995 a 2005, é o que eu chamaria de era do acesso, ou seja, todos os conteúdos se tornaram ficheiros, zeros e uns, até ficarmos com esta ideia de biblioteca de Alexandria universal, ou de aldeia universal, como diria McLuhan. Há esse momento muito importante da utopia da rede universal. A partir de 2005-2006, quando inventam o smartphone, inventam também a conexão permanente, é o que podemos chamar de momento de propagação, onde posso compartilhar, amplificar, editar, acelerar quase tudo. Esta é uma era em que a economia dos dados começa a dominar a estrutura da rede. Com um mecanismo a que chamei, em A Civilização do Peixe-Vermelho, de economia da atenção, onde toda a rede é estruturada de forma a captar a nossa atenção constantemente. Esse momento tem duas consequências. Uma individual, que é a nossa dependência do telefone. E uma coletiva, que é a polarização - o facto de, em determinado momento, todas as mensagens, emocionais ou não, terem precedência sobre as restantes. Temos uma terceira fase que está a chegar, em particular com a Inteligência Artificial generativa. Eu não sou dos que temem o transumanismo: talvez daqui a 10, 15, 20 anos, mas por enquanto é ficção científica. O que não é ficção científica é que os textos, as imagens, os sons com que nos deparamos são cada vez mais infinitos. Por isso digo que é como um tsunami. E não vai acalmar. Não há limite humano à produção de mensagens. Isso significa que, submersos por tantas mensagens, cada vez mais nos vamos apoiar em instrumentos para navegar entre elas. Instrumentos que são baseados em cálculos e, portanto, nos vão propor cada vez menos coisas que não procuramos e não nos vão dizer que não encontram o que procuramos. Estes instrumentos oferecer-nos-ão sempre versões calculadas de nós próprios. E uma versão calculada é uma versão reduzida de nós mesmos. .SubmersosBruno PatinoGradiva92 páginas.Podemos dizer que é cada vez mais o algoritmo que decide por nós? Por exemplo, as redes sociais só nos dão aquilo que o algoritmo acha que nos vai interessar… No meu livro falo em duas noções: a noção de discernimento e a noção de livre arbítrio. Toda a filosofia do Iluminismo nasce desta ideia de que temos uma capacidade real de livre arbítrio, e que quanto mais a usarmos, mais livres somos. Em muitos pontos, é verdade. Aqui coloco duas coisas em paralelo: a primeira, é que a neurociência está a dizer cada vez mais que o livre arbítrio é muito discutível. Por isso, é que me interessa partir de exemplos tão triviais como vermos o Amazon Prime, o Netflix ou estarmos numa loja a comprar calças de ganga. Estou a falar no trabalho sobre o paradoxo da escolha, em particular o trabalho de Barry Schwartz, que consiste em dizer que só somos capazes de fazer escolhas quando temos várias opções, mas um número limitado de opções. Se tivermos de escolher entre 8, 10 ou 12 opções, demoramos algum tempo, mas escolhemos. Se tiveres de escolher entre demasiadas opções, vamos delegar essa escolha. Quando vão a um restaurante, se vos oferecerem 3 pratos, fazem a vossa escolha, se houver 40, vão dizer ao vosso acompanhante: “O que é que vais comer?” É óbvio que quando nos deparamos com 35 000 programas como no Netflix, ou 120 milhões de músicas como no Spotify, é difícil saber o que fazer. Delegamos a nossa escolha. A questão central é: em quem confiar para delegar a escolha? E assim a escolha já não é a escolha em si, mas a escolha da ferramenta que lhe permitirá fazer a escolha. O que eu digo neste livro é para termos cuidado, porque se nos virarmos para uma simples fórmula matemática que tem apenas uma versão calculada de nós próprios para fazer a nossa escolha, então é uma versão reduzida de nós próprios que prevalece. Reduzida de um ponto de vista cultural, reduzida de um ponto de vista filosófico e até reduzida de um ponto de vista espiritual.E se transferirmos isto para a política? A ideia que temos é que somos cada vez mais bombardeados com as mesmas ideias e as mesmas escolhas. Isso leva a esta polarização crescente que vemos na sociedade? Duas coisas. Primeiro, sobre a escolha política. É um pouco como aquela canção do Bruce Springsteen que diz: “Há 57 canais de televisão e nada para ver na televisão.” Quem tem três canais diz que há umas coisas de que gosta, quem tem 50 acha que não há nada de interessante e quem tem 150 diz que não tem nada para ver. Politicamente, quando temos 3 candidatos ou 4 candidatos, eles não são perfeitos, quando há 17, dizemos que estão todos a propor a mesma coisa, e quando há 50, dizemos que é tudo um disparate, ninguém está a propor aquilo que eu gostaria de ouvir. Quanto mais opções tivermos, menos satisfeitos estaremos. Ao mesmo tempo, estão a acontecer duas coisas que estão a mudar a nossa relação com a vida política. A primeira é a polarização. Falo muito da polarização n’A Civilização do Peixe-Vermelho porque, para mim, esta não se deve apenas às redes sociais ou à economia da atenção. A polarização também se deve a fenómenos económicos, sociais, políticos e estruturais. As redes e plataformas sociais vivem de um modelo de publicidade e, para desenvolverem o seu negócio, precisam que passemos muito tempo nelas, pelo que vão desenvolver ferramentas para nos viciarem. Uma mensagem economicamente eficaz é aquela que satisfaz duas condições: atrai de imediato a minha atenção e vou partilhá-la muito rapidamente. Ora, todos os estudos mostram que quanto mais emocional é uma mensagem, mais eficaz é do ponto de vista económico, e que, de todas as emoções, a mais eficaz é a raiva. Foi assim que se deu a polarização do espaço público. Não é por acaso que a forma como o debate político está estruturado em todas as nossas democracias significa que a ingovernabilidade está a aumentar.Temos um bom exemplo disso em França… França, infelizmente dá-nos esse exemplo. Como em 2016 dizíamos que era nos EUA..A raiva era Trump? Ele era muito bom com a raiva. Um pouco antes, houve também o Brexit. Eu trabalho muito com a Alemanha também e vejo como acontece também por lá. Por isso, estou muito preocupado com a democracia. Acrescente-se a isso um último tema de Submersos, que é o facto de todo este fluxo de mensagens estar gradualmente a esbater a linha entre ficção e realidade. Sigo uma conta no Instagram chamada Beatles Artificial Intelligence - Beatles AI. E há uma nova canção de John Lennon todas as semanas, que obviamente não é uma canção de John Lennon, mas uma versão calculada do que John Lennon poderia ser. Há uma familiaridade, mas, ao mesmo tempo, sentimos que ele não teria feito aquilo. É uma fantochada. É o que eu chamo um simulacro. Mas quando se trata de informação, é terrível. Se já não conseguirmos distinguir entre o que é verdadeiro e o que é falso, as nossas sociedades tornar-se-ão não só polarizadas, mas terão todas as armas necessárias para transformar essa polarização em guerra civil..Foi jornalista, é presidente do canal franco-alemão Arte, foi vice-presidente do grupo Le Monde. Qual o lugar dos media tradicionais neste mundo atual? Tento responder a essa pergunta em Submersos. Voltamos à questão da confiança. O trabalho do jornalista é a confiança. Cada vez mais. Se olharmos para o início do século XX, etc., diz-se que o jornalismo consiste em tornar público algo que um poder, seja político, económico ou científico, quer esconder. Hoje, a coisa que se quer esconder está lá, mas é abafada por tantas outras coisas. E como eu, enquanto espectador, já não consigo distinguir o que é verdadeiro do que é falso, o que é alucinação do que é realidade, desisto. Já não confio em ninguém. O papel do jornalismo é o de fornecer um certificado de realidade. O paradoxo dos nossos tempos é que este papel nunca foi tão importante, mas, por outro lado, o ecossistema geral está a minar este papel. Se todos cairmos numa alucinação polarizada, então nem sequer haverá lugar para a política, só haverá lugar para a guerra civil. Se vivemos em universos completamente diferentes, não há razão para vivermos juntos, porque as nossas realidades são tão distopicamente diferentes que não há ponto de convergência.