Desplante total ou lata - Blitz foi feito para ser posto no ranking dos melhores filmes de guerra de todos os tempos. Steve McQueen, que até hoje tem provado ser um dos cineastas britânicos mais inspirados dos últimos anos, não deve conseguir essa distinção, mesmo quando é impossível não admirar o gesto de ambição, de grandiosidade. Trata-se de um artista a querer jogar em grande com esta história de inocência infantil em tempo de guerra na Londres dos bombardeamentos nazis na II Guerra Mundial. Um artista que desta vez expõe a linha ténue que separa as suas mais recentes veleidades de fundir storytelling com a sua herança de artista visual. Blitz é, por isso e por direito, o chamado “filme de artista”, mas o “filme de artista” total para o chamado “grande público” - é por isso que teve um cheque vistoso da Apple para uma super-produção que recria com assustadora autenticidade as ruínas da Londres de 1940, sem faltar explosões, figurantes aos milhares, cenários faustosos e uma escala de desenho de produção absolutamente imbatível. .Uma Londres a engolir um menino.E se McQueen não consegue a distinção de elevação para a História tal se deve a uma certa indigestão entre a pose de coreografia artística e os deveres do predomínio narrativo. Algo no meio fica perdido nestas aventuras de um menino mestiço que é enviado com centenas de outras crianças para fora do centro de Londres. George, por seu turno, sente-se abandonado pela mãe e salta do comboio em pleno campo, encetando de imediato uma viagem de regresso num outro vagão onde forma alianças, sofre ameaças e depara-se com os horrores da guerra.Já em Londres é forçado a fazer recados criminosos para uma trupe de delinquentes comandados por um ladrão sem coração. De repente, George está a roubar colares e anéis de cadáveres. A câmara de McQueen, sempre acompanhada com veemência pela música de Hans Zimmer, segue a criança quase como uma instalação saudosista de um espírito inglês de outros tempos. É como se fosse uma peça viva de coreografia de artista de museu, corpos e poses ao lado da tragédia.A evocação nostálgica tem essa vontade de ser como um palco trágico, algures entre a patine de um orgulho de nação e um olhar misericordioso perante a possibilidade de um final de uma existência londrina. Um cerimonial que mete respeito, isso de certeza, em especial quando encena um expressionismo que tem tanto de pomposo como de sinfónico..Nos píncaros de Dickens.A meio deste conto, muitas vezes embrulhado pela capa de Charles Dickens, o saudosismo de um certo conceito de “cinema inglês” vem ao de cima, ficando-se com a impressão que o menino George poderia brincar com o menino de Esperança e Glória, de John Boorman (que em 1987 filmava a sua infância durante o mesmo período). Coisa de saudosismo, mas o cinéfilo também vai pensar em O Império do Sol, de Steven Spielberg, mesmo que aí as paragens fossem de outra latitude. Seja como for, McQueen quis ir buscar a vibração do filme de aventuras..Benjamin Clementine e Paul Weller convocados.Admirável é a forma como capta esse sentido com uma inclinação para o musical - a mãe do menino, a excelente Saiorse Ronan é uma operária que sonha ser cantora e o avô do menino (interpretado pelo improvável Paul Weller), canta e tem um piano em casa. Ouvem-se também cantoras de swing no metro e o guarda noturno é nem mais nem menos que Benjamin Clementine.Nesse altar de alegorias, McQueen tem ainda espaço para abordar o racismo - em flashback fala do romance interracial entre a mãe do menino e um emigrante de África. É uma adenda e o filme ressente-se disso. Ressente-se também da falta de tratamento de algumas personagens - o cavalheiro de Harris Dickinson (provavelmente o maior ator inglês da sua geração) parece ficar perdido…