Recuperemos uma velha máxima dos tempos áureos da cinefilia — penso nas convulsões artísticas das “novas vagas” da década de 1960, quando a expressão “tudo é possível” foi, para melhor e para o pior, um verdadeiro motor político — e lembremos que um grande filme é aquele que nos empurra para as alegrias de uma genuína perplexidade: afinal, o que é que eu estou a ver? Batalha Atrás de Batalha, a nova proeza de Paul Thomas Anderson (quatro anos depois do anterior Licorice Pizza), com Leonardo DiCaprio numa performance obrigatoriamente “oscarizável”, é um desses filmes — imenso, truculento, genial e, por fim, impossível de rotular.Ainda assim... Batalha Atrás de Batalha convoca-nos através da mais óbvia ou, se quiserem, da mais industrial das linguagens. Não, não estamos perante uma “tese”, nem sequer uma parábola, sobre a América de Donald Trump, mesmo se o filme não hesita em acumular sinais de perturbação que sentimos cúmplices do nosso presente. Seja como for, não vale a pena procurar “simbolismos” fáceis neste tempo em que alguma crítica dos EUA gastou uma boa dose de energias reformistas a tentar provar que, na sua gloriosa mediocridade conceptual e narrativa, o mais recente Superman estava recheado de “mensagens” sobre a América do MAGA...Ainda assim, de facto: se há alguma linguagem que possa caracterizar a arfante respiração dramática de Batalha Atrás de Batalha será, podem crer, a do chamado “filme de ação”. Enfim, não estamos perante as ruidosas explosões com que a Marvel finge que está a fazer cinema, mas não há dúvida que, na sua dimensão mais física, esta é uma história de ações vertiginosas, encenadas numa velocidade estonteante, não de planetas a explodir, mas de fulgurantes ideias de espaço e tempo (leia-se: cinema).Espaço e tempo, justamente. Bob Ferguson (DiCaprio) deixou de ter um espaço seguro para viver e as suas medidas do tempo estão algo afetadas por causa das substâncias pouco recomendáveis que consumiu enquanto pertenceu ao chamado French 75, um grupo revolucionário armado que vemos na estonteante cena de abertura a libertar umas dezenas de imigrantes detidos na fronteira México-EUA. O filme dá um salto de 16 anos e a filha de Bob, Willa (Chase Infiniti, notável revelação), nascida naquele período, é alvo de um processo de ameaças cujo pivot é o coronel Lockjaw (Sean Penn), velho inimigo de Bob e agente de uma América que se rege pela violência da supremacia branca...Que se passa, realmente? Livremente inspirado no romance Vineland (1990), de Thomas Pynchon (que evoca um grupo de ativistas da década de 60 a viver na América de Ronald Reagan), Batalha Atrás de Batalha possui a tocante grandiosidade de uma epopeia familiar. Num duplo sentido: primeiro, através do sentimento de perda das formas tradicionais de harmonia entre as gerações; depois, encenando Bob como um herdeiro ferido de uma ideia de redenção made in USA em que seria possível encontrar, ou construir, um lugar para viver recolhido no corpo materno da própria América.Um filme da WarnerBatalha Atrás de Batalha é, afinal, um espelho amargo e doce do desespero nostálgico de um anti-herói obrigado a reconhecer que a crença num paraíso perdido se esboroou na ansiedade das nossas vidas aceleradas. Nessa medida, há nele a intensidade própria de um objeto capaz de se relacionar com as nossas mais secretas inquietações — quem sou eu, que faço aqui, o que é isso de olhar para um ecrã com imagens em movimento?Das ambivalências do realismo à mais pura vibração épica, de John Ford a Paul Thomas Anderson, o melhor cinema de Hollywood (recorde-se que Batalha Atrás de Batalha tem chancela da Warner Bros.) continua a existir como uma arte de enfrentar a complexidade de um mundo feito das muitas linhas cruzadas do individual e do coletivo. Enfim, sem esquecer, já agora, que a música original de Jonny Greenwood é uma obra-prima dentro de uma obra-prima — escutemos com atenção..'Ernest Cole - Perdido e Achado'. Redescobrindo imagens do Apartheid.'No Romper da Luz'. Histórias de amor, palavras e luz