Foi um ano bom para o cinema português. Os filmes estreados em 2025 refletem uma variedade de produção que importa saudar, mesmo se todos sabemos que tal abundância não corresponde à existência de uma indústria com um mínimo de solidez estrutural — a cultura democrática gerou uma poderosa indústria de telenovelas que continua a dominar a ficção e o imaginário audiovisual da nossa sociedade. Com várias distinções internacionais, O Riso e a Faca, de Pedro Pinho, poderá servir de emblema de um cinema que, melhor ou pior, vai resistindo ao vírus “telenovelesco”, não abdicando de uma relação inteligente com os espectadores. .'O Riso e a Faca'. À procura da Europa perdida. Foi um ano mau para o cinema português. A meia centena de novos títulos não reflete uma implantação real no mercado, aliás mobilizando um total de espectadores que deverá ficar perto dos 200 mil. A situação afigura-se tanto mais dramática quanto está há 50 anos viciada (e manipulada) pela ideologia que mantém a circular a noção pueril segundo a qual se trata de “escolher” entre produtos “comerciais” e filmes “artísticos”. Neste domínio, os problemas do cinema português são apenas um sintoma de uma tragédia muito mais geral. Ou seja: a metódica destruição da base clássica de espectadores de filmes (de qualquer nacionalidade) pelos valores de uma cultura audiovisual dominada pelas novelas, a Reality TV, o futebol e a encenação conflituosa da cena política. Entretanto, o ano cinematográfico deverá terminar com pouco mais de 10 milhões de espectadores, abaixo dos valores de 2024. Cinema & verdade E, no entanto, como diria Galileu, “ela move-se...” Quem? A arte cinematográfica, essa maravilha de emoções, mitologias e trabalho que Richard Linklater soube retratar de modo tão delicado no seu Nouvelle Vague, revisitando o cinema francês nos tempos heróicos da... Nova Vaga. É uma arte cada vez mais marcada pelos equilíbrios instáveis entre as salas e as plataformas de streaming, mas não desistindo de olhar o mundo à nossa volta, discutindo os mecanismos nem sempre transparentes da sua verdade. Proponho, por isso, duas escolhas, arbitrárias como é óbvio, mas talvez sugestivas: a personagem do ano e a frase do ano. .'Nouvelle Vague'. Godard, aqui e agora .A personagem do ano será Michelle Fuller, no filme Bugonia, de Yorgos Lanthimos: CEO de uma grande companhia farmacêutica, é raptada por dois homens que a acusam de pertencer a um povo alienígena que está a destruir as abelhas como primeira fase de um processo de invasão e conquista do planeta Terra... Interpretada pela magnífica Emma Stone, Michelle impõe-se como um corpo muito real, alheio a qualquer figuração digital: rapam-lhe a cabeça, cobrem-na com um produto viscoso que a deverá impedir de “comunicar” com a sua nave e sujeitam-na a interrogatórios com eletrochoques. Num sugestivo labirinto de ambiguidades (que importa não revelar aqui), ela protagoniza um dos dramas existenciais a que o nosso mundo de algoritmos nos vai sujeitando: o que é, e onde está, a verdade? Como dizê-la? E em termos cinematográficos: como mostrá-la? .'Bugonia'. Redescobrindo o prazer da fábula .Julia Roberts deixou-nos a frase do ano no brilhante Depois da Caçada, de Luca Guadagnino. No papel de Alma Imhoff, uma professora chantageada por uma aluna marcada pela ditadura moral do politicamente correcto (aliada a uma violência normativa sem um pingo de humanismo), ela ouve essa aluna dizer-lhe que não se sente “confortável” com a conversa que estão a ter. Resposta de Alma: “Nem tudo é suposto deixar-te confortável, Maggie.” Não aceitando o infantilismo ditatorial da aluna, a genialidade da frase rima com uma preciosa alusão artística: “Pára de ser tão literal. Tentar anular a alternativa filosófica, transformando-a num binarismo sociopolítico, é como aquele turista suado num museu de arte moderna que aponta para um Pollock e diz: ‘O meu filho era capaz de fazer isto’.” .'Depois da Caçada'. O cinema é também uma arte da palavra.Daí que seja necessário sublinhar o impacto realmente global de um filme como Batalha Atrás de Batalha, de Paul Thomas Anderson, com um elenco de sofisticados talentos liderado por Leonardo DiCaprio. Desde logo porque se trata de um objecto que dilui qualquer fronteira entre “cinema-espectáculo” e “cinema-de-autor", “filmes-de-estúdios” e “filmes-independentes”. Sem esquecer que a sua condição de “thriller” vertiginoso não exclui, antes parece intensificar, uma visão ironicamente realista do imaginário político “made in USA”. Dizem os oráculos de Hollywood, a começar pela revista Variety, que se perfila como o grande candidato ao Óscar de melhor filme (cerimónia marcada para 15 de março). .'Batalha Atrás de Batalha'. A América e o seu paraíso perdido. Cultura & comércio As componentes realistas marcaram mesmo alguns dos filmes de culto do ano, incluindo O Agente Secreto, fábula política do brasileiro Kleber Mendonça Filho, e, claro, Foi Só um Acidente, do iraniano Jafar Panahi, contundente retrato da desumanização das relações sociais. O reconhecimento internacional de Foi Só um Acidente tem estado a crescer em paralelo com o julgamento do próprio Panahi pelas autoridades do Irão. Neste contexto dramático, pode dizer-se que Foi Só um Acidente parece “condenado” à maior glória universal, literalmente sem fronteiras — ou seja, o Óscar de melhor filme internacional. .Kleber Mendonça Filho: “O Brasil possui uma força poética feita de sentimentos e espiritualidade”.Enfim, para que a discussão não atraia mais maniqueísmos, será salutar continuarmos a pensar o papel das plataformas de streaming nas dinâmicas culturais e comerciais do cinema — na certeza de que, ao contrário do que proclama algum jornalismo moralista, “cultural” e “comercial” são duas faces da mesma moeda. Celebremos, por isso, as novas realizações de Spike Lee (Highest 2 Lowest) e Kathryn Bigelow (A House of Dynamite) como dois filmes fascinantes que, em qualquer caso, no contexto português, foram exclusivo dos nossos ecrãs caseiros. .TOP 10Não os “bons” contra os “maus”, apenas uma escolha de uma dezena de títulos, na certeza que há pelo menos mais dez, também brilhantes, que ficam de fora..1. NOUVELLE VAGUE. A evocação da rodagem, em Paris, da primeira longa-metragem de Jean-Luc Godard (O Acossado, 1960) tem tanto de fresco histórico como de celebração do amor pelo cinema — no sentido mais depurado, esta é uma verdadeira lição ética e estética.2. VERDADES DIFÍCEIS. No panorama multifacetado dos realismos, Mike Leigh persiste como um autor genuinamente marcado pela tradição do realismo britânico. A partir da banalidade do quotidiano, este é também um filme sobre a dimensão invisível das relações humanas.3. FOI SÓ UM ACIDENTE. Ou como um acidente de automóvel “sem importância” se transfigura numa avalanche de pressentimentos e evidências, questionando a organização política de toda uma sociedade. Jafar Panahi assina um drama iraniano pleno de ressonâncias universais.4. BATALHA ATRÁS DE BATALHA. Herdeiro de mestres clássicos como John Ford ou Samuel Fuller, Paul Thomas Anderson continua a ser um cineasta que, a partir de uma ferida familiar (o reencontro de um pai com uma filha), sabe expor as convulsões de toda uma nação.5. HIGHEST 2 LOWEST. Visto na AppleTV+, eis uma saga financeira e moral protagonizada por um magnate da edição musical (Denzel Washington), espelhando de modo subtil as diferenças materiais e simbólicas da organização social dos EUA — Spike Lee sempre em forma.6. JOVENS MÃES. Os irmãos Dardenne continuam a observar as tensões internas da sociedade belga, neste caso através de uma galeria de jovens que enfrentam o desafio da maternidade numa instituição de acolhimento — ficção super-elaborada com uma respiração de documentário.7. JUVENTUDE. Autor do inesquecível Três Irmãs (2012), Wang Bing continua a ser um metódico observador das dinâmicas sociais da China, neste caso tendo como ponto de partida um grupo de jovens com empregos precários no têxtil — o olhar documental na máxima energia dramática.8. A HOUSE OF DYNAMITE. Um míssil de origem não identificada surge nos radares em direção à cidade de Chicago — a partir de uma premissa de thriller, Kathryn Bigelow consegue a proeza de transfigurar a perturbação espectacular em genuína parábola política (visto na Netflix).9. DEPOIS DA CAÇADA. Depois do prodigioso Queer (2024), baseado em William S. Burroughs, Luca Guadagnino prossegue o seu ziguezague criativo com uma crónica sobre os bastidores universitários capaz de expor, com verdadeiro didactismo, as obscenidades do politicamente correto.10. SORRY, BABY. Marcada pelo penoso trabalho de luto de uma experiência traumática, uma mulher vive, afinal, aquilo que podemos definir como uma elaborada reconstrução íntima da própria realidade. Escrito, interpretado e realizado por Eva Victor, esta foi a grande revelação do ano.