Escritor Pedro Almeida Maia numa visita a Boston.
Escritor Pedro Almeida Maia numa visita a Boston.DR

“Açoriano Salvador Silver defrontou, solitário e heroico, 12 sujeitos da máfia para proteger uma namorada”

É a partir da história real de um pequeno gangster açoriano nos Estados Unidos que Pedro Almeida Maia constrói 'Condenação', o seu mais recente romance.
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Sem querer desvendar demasiado o romance Condenação, o gangster açoriano Salvador Silver que é o protagonista tem uma base real, certo?

Sim, baseia-se numa história verdadeira, paralela ao mediático caso Sacco-Vanzetti. No entanto, enquanto os anarquistas italianos foram o centro das atenções, o açoriano nunca passou de uma nota de rodapé nas notícias. Optei por não usar o nome verdadeiro do protagonista nem dos familiares, mas os restantes ingredientes são factuais: pessoas, lugares, datas, julgamentos, provas, testemunhos. O gatilho para o tema foi a leitura de um artigo do historiador Sérgio Rezendes, “Um gângster micaelense e a cadeira elétrica no tempo da Lei Seca: a Diáspora numa visão ao contrário”; mais tarde, o artigo de António Araújo “Dois mártires (ou talvez três)”, publicado em 2019 no Diário de Notícias, que também abordava o caso. Daí em diante, percebi que faria sentido romancear o lado menos conhecido da emigração, ou de quando as coisas não correm assim tão bem. Não iria romantizar a emigração. Foi quando comecei a vasculhar e a encontrar um manancial de informação.

A família de Salvador Silver, que deixou São Miguel para se fixar na Nova Inglaterra, é representativa das famílias açorianas que emigraram para os Estados Unidos naquele início de século XX?

Sim e não. Era uma família numerosa: além do casal, embarcaram sete dos nove filhos (dois haviam morrido na ilha). A maior parte dos agregados dependia do trabalho do homem, mas também da mulher, sobretudo na indústria têxtil; neste caso, o pai adoeceu e não tenho indicação de a mãe ter tido emprego, portanto, foram os filhos que tiveram de sustentar a casa. Mas New Bedford já era um dos destinos para a debandada açoriana, a par com Fall River e Boston, na Costa Leste. O estado da Califórnia começava a atrair açorenses, por causa da agricultura e da pecuária, e emergem muitas histórias de riqueza à custa do trabalho na terra, como a de Fred Mendonsa, Rei das Ovelhas do Sacramento Valley, mas também histórias de coragem, como a de Manuel Brazil, o indivíduo nascido na ilha de São Jorge que se diz ter denunciado Billy The Kid. São centenas de histórias, e cada uma delas dava um romance. Mas o menos representativo das famílias tradicionais açorianas, caricato até, era precisamente o filho mais novo: péssimo na escola, sofria de epilepsia, já roubava casas aos 12 anos, juntou-se a aldrabões e mafiosos e fez-se passar por outras pessoas para perpetrar delitos. Além disso, desapareceu durante três anos com uma rapariga do circo, dava tiros para o teto para caçar moscas e até defrontou, solitário e heroico, 12 sujeitos da máfia para proteger uma namorada (da mais antiga profissão do mundo). Eram ingredientes que prometiam.

Ainda sobre a família de Salvador Silver: uma mãe que provavelmente não falava inglês, pois precisou de tradutor quando foi prestar depoimento no tribunal, e uma irmã que já estava em acelerado processo de integração na sociedade americana são bem representativas de como a americanização funciona a várias velocidades?

Sim, quem falasse inglês levava vantagem (não era o caso da mãe). No geral, os portugueses juntavam-se em comunidades que falavam apenas português e foram ultrapassados por imigrantes que tinham chegado antes, ou que mais facilmente aprendiam o idioma, mas havia exceções. Depois de ter explorado o tema da emigração para os EUA no romance Ilha-América, na perspetiva de quem parte da ilha, desta vez procurei inverter o olhar, observando de fora para dentro. Escolhi a voz de um narrador americano que se dirige ao escritor, dando ao leitor a possibilidade de assumir o papel de quem acolhe os portugueses enquanto imigrantes, o que considero um exercício pertinente nos nossos dias.

CONDENAÇÃO

Pedro Almeida Maia

Cultura Editora

328 páginas

19,45 euros

A referência constante pelas personagens portuguesas do livro aos Açores, uma saudade permanente apesar da pobreza das ilhas de onde tinham saído, também é uma regra nos emigrantes?

Tenho privado com emigrantes açorianos e, se pudesse apontar um fator comum na relação com as suas origens, seria a facilidade com que deixam verter uma lágrima quando se fala do lugar de onde vêm. É o chamado long-distance nationalism, que dificilmente sucede quando nunca tivemos de abandonar a pátria. A minha experiência de pseudo-emigrante na Irlanda pode também ter servido como catalisador para conseguir descrever esse saudosismo emigrante.

Para construir a personagem Salvador Silver, contou com literatura da época? Um jovem gangster luso-americano teria de ser daquela maneira?

Falei com especialistas, li dezenas de livros (do John dos Passos ao Os Portugueses no Faroeste: Terra a Perder de Vista), vi documentários e filmes, procurei mapas e jornais americanos, incluindo edições antigas do Boston Globe. Também viajei aos EUA em 2023, consultei arquivos, prisões e museus. Montei um puzzle intricado e preenchi os vazios. Por exemplo, para escrever sobre a fuga do protagonista com a rapariga circense, tive de me aprofundar no mundo do circo, no tempo em que Chaplin fazia sucesso no cinema e Houdini fascinava com o escapismo.

Era a época da Lei Seca nos Estados Unidos. Conseguiu retratá-la muito bem no romance. Também os emigrantes portugueses foram afetados, alguns deles com destilarias ilegais ou traficantes mesmo. O algarvio Manuel Zorra, ou Many Zorra, também dava um romance?

Sim, havia açorianos que produziam bebidas espirituosas em alambiques clandestinos nas suas caves. Dizia-se “gin de banheira”, expressão que ficou conhecida na resistência à Lei Seca. Creio que a história de Manuel Zorra deu mesmo origem a um romance, mas escrito em inglês e publicado nos EUA. Em Portugal, são histórias desconhecidas ou que acabam abandonadas. Mas há inúmeras, muitas envolvendo portugueses. Devo confessar que tive dúvidas em avançar com a escrita deste livro: entrar na mente de um criminoso pode mexer connosco, mesmo tendo a psicologia como aliada. Além disso, pela primeira vez abordei a história de um anti-herói, ainda por cima introvertido. Felizmente, os meus livros têm sido bem recebidos pela crítica literária e pelos leitores, mas admito que escrever sobre protagonistas densos e pouco consensuais é sempre um risco.

Sacco e Vanzetti são importantes na narrativa. Foi mesmo um escândalo na América, e fora dela, a condenação?

Hoje é incontestável que Sacco e Vanzetti não foram os autores dos crimes que os levaram a tribunal. O caso teve tal repercussão que inspirou filmes, documentários, peças de teatro, músicas, pinturas e até desencadeou greves e manifestações em massa, algumas delas marcadas por grande violência, em várias partes do mundo, em defesa da absolvição. O funeral deles teve uma assistência de mais de cem mil pessoas. É um dos casos legais mais estudados nos EUA, pelos piores motivos: levou inocentes à cadeira elétrica (e a pena de morte continua a ser aplicada nalguns contextos). O que quase ninguém conhecia era a figura de um criminoso açoriano que chegou a tentar assumir parte da responsabilidade para os ilibar.

Esta época do romance é também uma época em que os estrangeiros são malvistos na América. Percebe porquê?

Os estrangeiros eram vistos com desconfiança porque aceitavam salários baixos, havia grandes diferenças culturais, preconceitos étnicos e medos políticos, sendo muitas vezes associados a ideias radicais ou atividades ilícitas, o que gerava hostilidade e segregação. Enfim, eram os Loucos Anos Vinte. Mas é importante pensar se não estamos nós a viver outros loucos anos vinte, embora num novo século.

Os Açores e os açorianos são um manancial para um romancista?

Trago os Açores para a escrita por afeto à terra onde nasci, não por imposição. Tenho muitos outros temas literários que gostaria de explorar e que não se ligam diretamente aos Açores, preciso de refletir sobre o que vou escrever a seguir. Nos contos que tenho vindo a escrever, o tema da ilha é mais raro, por exemplo. Ainda assim, acredito que o arquipélago continuará a aparecer, ainda que sob outras formas e perspetivas. Creio que existe uma mística muito própria que rodeia esta parcela atlântica.

Como vê hoje a comunidade portuguesa nos Estados Unidos, sobretudo a que é de origem açoriana?

Com respeito e admiração. Na sua maioria, pessoas de bem e com grandes capacidades. Uma boa parte da minha família emigrou, e respeito-os pela coragem que tiveram e a pertinácia de refazer a vida noutro lugar. Por vezes, sinto que também deveria ter arriscado noutro país, e isso está patente nos meus livros. Mas também é necessária coragem para ficar, sobretudo quando parece que estamos numa luta por uma sociedade melhor que podemos nunca vencer.

Está a caminho a edição em inglês deste Condenação?

Para o mercado dos EUA, já está disponível em eBook, mas na versão portuguesa. O romance Ilha-América está em vias de ser traduzido por Scott Edward Anderson e A Escrava Açoriana já está traduzido para inglês por Diniz Borges, mas ainda estou em busca de agenciamento ou editora com distribuição além-fronteiras. Creio que este Condenação também reúne todas as condições para ser publicado em inglês, espero poder dizer em breve que tal vai mesmo acontecer.

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