Sem querer desvendar demasiado o romance Condenação, o gangster açoriano Salvador Silver que é o protagonista tem uma base real, certo? Sim, baseia-se numa história verdadeira, paralela ao mediático caso Sacco-Vanzetti. No entanto, enquanto os anarquistas italianos foram o centro das atenções, o açoriano nunca passou de uma nota de rodapé nas notícias. Optei por não usar o nome verdadeiro do protagonista nem dos familiares, mas os restantes ingredientes são factuais: pessoas, lugares, datas, julgamentos, provas, testemunhos. O gatilho para o tema foi a leitura de um artigo do historiador Sérgio Rezendes, “Um gângster micaelense e a cadeira elétrica no tempo da Lei Seca: a Diáspora numa visão ao contrário”; mais tarde, o artigo de António Araújo “Dois mártires (ou talvez três)”, publicado em 2019 no Diário de Notícias, que também abordava o caso. Daí em diante, percebi que faria sentido romancear o lado menos conhecido da emigração, ou de quando as coisas não correm assim tão bem. Não iria romantizar a emigração. Foi quando comecei a vasculhar e a encontrar um manancial de informação. A família de Salvador Silver, que deixou São Miguel para se fixar na Nova Inglaterra, é representativa das famílias açorianas que emigraram para os Estados Unidos naquele início de século XX? Sim e não. Era uma família numerosa: além do casal, embarcaram sete dos nove filhos (dois haviam morrido na ilha). A maior parte dos agregados dependia do trabalho do homem, mas também da mulher, sobretudo na indústria têxtil; neste caso, o pai adoeceu e não tenho indicação de a mãe ter tido emprego, portanto, foram os filhos que tiveram de sustentar a casa. Mas New Bedford já era um dos destinos para a debandada açoriana, a par com Fall River e Boston, na Costa Leste. O estado da Califórnia começava a atrair açorenses, por causa da agricultura e da pecuária, e emergem muitas histórias de riqueza à custa do trabalho na terra, como a de Fred Mendonsa, Rei das Ovelhas do Sacramento Valley, mas também histórias de coragem, como a de Manuel Brazil, o indivíduo nascido na ilha de São Jorge que se diz ter denunciado Billy The Kid. São centenas de histórias, e cada uma delas dava um romance. Mas o menos representativo das famílias tradicionais açorianas, caricato até, era precisamente o filho mais novo: péssimo na escola, sofria de epilepsia, já roubava casas aos 12 anos, juntou-se a aldrabões e mafiosos e fez-se passar por outras pessoas para perpetrar delitos. Além disso, desapareceu durante três anos com uma rapariga do circo, dava tiros para o teto para caçar moscas e até defrontou, solitário e heroico, 12 sujeitos da máfia para proteger uma namorada (da mais antiga profissão do mundo). Eram ingredientes que prometiam. Ainda sobre a família de Salvador Silver: uma mãe que provavelmente não falava inglês, pois precisou de tradutor quando foi prestar depoimento no tribunal, e uma irmã que já estava em acelerado processo de integração na sociedade americana são bem representativas de como a americanização funciona a várias velocidades? Sim, quem falasse inglês levava vantagem (não era o caso da mãe). No geral, os portugueses juntavam-se em comunidades que falavam apenas português e foram ultrapassados por imigrantes que tinham chegado antes, ou que mais facilmente aprendiam o idioma, mas havia exceções. Depois de ter explorado o tema da emigração para os EUA no romance Ilha-América, na perspetiva de quem parte da ilha, desta vez procurei inverter o olhar, observando de fora para dentro. Escolhi a voz de um narrador americano que se dirige ao escritor, dando ao leitor a possibilidade de assumir o papel de quem acolhe os portugueses enquanto imigrantes, o que considero um exercício pertinente nos nossos dias. .CONDENAÇÃOPedro Almeida MaiaCultura Editora328 páginas19,45 euros .A referência constante pelas personagens portuguesas do livro aos Açores, uma saudade permanente apesar da pobreza das ilhas de onde tinham saído, também é uma regra nos emigrantes? Tenho privado com emigrantes açorianos e, se pudesse apontar um fator comum na relação com as suas origens, seria a facilidade com que deixam verter uma lágrima quando se fala do lugar de onde vêm. É o chamado long-distance nationalism, que dificilmente sucede quando nunca tivemos de abandonar a pátria. A minha experiência de pseudo-emigrante na Irlanda pode também ter servido como catalisador para conseguir descrever esse saudosismo emigrante. Para construir a personagem Salvador Silver, contou com literatura da época? Um jovem gangster luso-americano teria de ser daquela maneira? Falei com especialistas, li dezenas de livros (do John dos Passos ao Os Portugueses no Faroeste: Terra a Perder de Vista), vi documentários e filmes, procurei mapas e jornais americanos, incluindo edições antigas do Boston Globe. Também viajei aos EUA em 2023, consultei arquivos, prisões e museus. Montei um puzzle intricado e preenchi os vazios. Por exemplo, para escrever sobre a fuga do protagonista com a rapariga circense, tive de me aprofundar no mundo do circo, no tempo em que Chaplin fazia sucesso no cinema e Houdini fascinava com o escapismo. Era a época da Lei Seca nos Estados Unidos. Conseguiu retratá-la muito bem no romance. Também os emigrantes portugueses foram afetados, alguns deles com destilarias ilegais ou traficantes mesmo. O algarvio Manuel Zorra, ou Many Zorra, também dava um romance? Sim, havia açorianos que produziam bebidas espirituosas em alambiques clandestinos nas suas caves. Dizia-se “gin de banheira”, expressão que ficou conhecida na resistência à Lei Seca. Creio que a história de Manuel Zorra deu mesmo origem a um romance, mas escrito em inglês e publicado nos EUA. Em Portugal, são histórias desconhecidas ou que acabam abandonadas. Mas há inúmeras, muitas envolvendo portugueses. Devo confessar que tive dúvidas em avançar com a escrita deste livro: entrar na mente de um criminoso pode mexer connosco, mesmo tendo a psicologia como aliada. Além disso, pela primeira vez abordei a história de um anti-herói, ainda por cima introvertido. Felizmente, os meus livros têm sido bem recebidos pela crítica literária e pelos leitores, mas admito que escrever sobre protagonistas densos e pouco consensuais é sempre um risco. Sacco e Vanzetti são importantes na narrativa. Foi mesmo um escândalo na América, e fora dela, a condenação? Hoje é incontestável que Sacco e Vanzetti não foram os autores dos crimes que os levaram a tribunal. O caso teve tal repercussão que inspirou filmes, documentários, peças de teatro, músicas, pinturas e até desencadeou greves e manifestações em massa, algumas delas marcadas por grande violência, em várias partes do mundo, em defesa da absolvição. O funeral deles teve uma assistência de mais de cem mil pessoas. É um dos casos legais mais estudados nos EUA, pelos piores motivos: levou inocentes à cadeira elétrica (e a pena de morte continua a ser aplicada nalguns contextos). O que quase ninguém conhecia era a figura de um criminoso açoriano que chegou a tentar assumir parte da responsabilidade para os ilibar. Esta época do romance é também uma época em que os estrangeiros são malvistos na América. Percebe porquê? Os estrangeiros eram vistos com desconfiança porque aceitavam salários baixos, havia grandes diferenças culturais, preconceitos étnicos e medos políticos, sendo muitas vezes associados a ideias radicais ou atividades ilícitas, o que gerava hostilidade e segregação. Enfim, eram os Loucos Anos Vinte. Mas é importante pensar se não estamos nós a viver outros loucos anos vinte, embora num novo século. Os Açores e os açorianos são um manancial para um romancista? Trago os Açores para a escrita por afeto à terra onde nasci, não por imposição. Tenho muitos outros temas literários que gostaria de explorar e que não se ligam diretamente aos Açores, preciso de refletir sobre o que vou escrever a seguir. Nos contos que tenho vindo a escrever, o tema da ilha é mais raro, por exemplo. Ainda assim, acredito que o arquipélago continuará a aparecer, ainda que sob outras formas e perspetivas. Creio que existe uma mística muito própria que rodeia esta parcela atlântica. Como vê hoje a comunidade portuguesa nos Estados Unidos, sobretudo a que é de origem açoriana? Com respeito e admiração. Na sua maioria, pessoas de bem e com grandes capacidades. Uma boa parte da minha família emigrou, e respeito-os pela coragem que tiveram e a pertinácia de refazer a vida noutro lugar. Por vezes, sinto que também deveria ter arriscado noutro país, e isso está patente nos meus livros. Mas também é necessária coragem para ficar, sobretudo quando parece que estamos numa luta por uma sociedade melhor que podemos nunca vencer. Está a caminho a edição em inglês deste Condenação? Para o mercado dos EUA, já está disponível em eBook, mas na versão portuguesa. O romance Ilha-América está em vias de ser traduzido por Scott Edward Anderson e A Escrava Açoriana já está traduzido para inglês por Diniz Borges, mas ainda estou em busca de agenciamento ou editora com distribuição além-fronteiras. Creio que este Condenação também reúne todas as condições para ser publicado em inglês, espero poder dizer em breve que tal vai mesmo acontecer.