Audrey Diwan. A leoa de ouro do cinema francês
Vencer o Leão de Ouro de Veneza quando não se está à espera e tornar-se num símbolo do novo feminismo em França. É isso o que está a acontecer a Audrey Diwan, realizadora de O Acontecimento, filme sobre um aborto clandestino na França dos anos 1960. A realizadora que se notabilizou como argumentista dos filmes do ex-companheiro, Cédric Jiminez, filma à flor da pele. Neste caso, uma pele despudoradamente feminina.
Importa talvez começar por me tentar explicar que tipo de reações este filme tem provocado às suas plateias. Há relatos de pessoas a desmaiar em certas projeções, sobretudo nas cenas mais explícitas de aborto...Fiquei com a sensação que procurou um efeito "carnal" no espetador.
Era essa carnalidade que desejava. Mais do que contar uma história, queria que o filme fosse uma experiência. Pelos festivais que o filme tem estado presente percebi que as reações foram mesmo fortes. Sim, há pessoas a desmaiar. É interessante constatar dois tipos de pessoas a reagir à personagem e à sua jornada: todas aquelas mulheres que viveram aquele período e rapazes dos dias de hoje, esses então ficam particularmente chocados pois desconheciam toda esta temática dos abortos clandestinos.
Este é o seu segundo filme. Por cá, poucos viram a sua estreia, À Beira da Loucura, apenas lançado no Home Cinema, mas durante as filmagens de O Acontecimento, quais foram as suas dúvidas de artista? Soube sempre o que queria?
Desta vez tinha uma ideia muito concreta, não sei se nos próximos filmes isso vai acontecer. Toda a equipa, composta por meus amigos mais íntimos, sabia muito bem o que fazer. Falámos muito antes das filmagens, havia uma enorme sintonia.
Citaçãocitacao"Um aborto clandestino nos anos 1960 nada tem a ver com o que se passa hoje. É de loucos pensar que não sabemos nada desse antigo processo."
Diria que o grau de intimidade que o filme propõe só pode ser captado com um olhar de uma realizadora?
Diria que o olhar feminino é uma das dimensões do filme. Mas, enquanto realizadora, não me reduzo ao "female gaze". Por exemplo, o facto de ter estudado ciências políticas, é muito importante para o meu cinema. Isso e todas as minhas outras experiências de vida...Mas ao filmar esta jovem estou a tornar-me nela e fui percebendo onde estava o seu olhar...A maneira como olho para o seu corpo é igual à maneira como ela olha para o seu próprio corpo.
O Acontecimento é o chamado "filme de choque". O que faz para a Audrey um bom "filme de choque"?
Tudo o que tenha imagens nunca dantes vistas, ou seja, o inédito! Fico sempre tocada por filmes que têm novas visões, muitas vezes pode ser apenas em questões formais...Depende...
Um dos filmes maiores do ano passado foi Nunca Raramente às Vezes Sempre, de Eliza Hittman, que também falava de aborto. Já agora, o que achou dessa obra?
Pois, esse filme fala de um aborto mas será clandestino? Temos de ter isso em atenção. Um aborto clandestino nos anos 1960 nada tem a ver com o que se passa hoje. É de loucos pensar que não sabemos nada desse antigo processo. Fiquei louca a perceber como desconhecia tantos factos e a importância do valor do silêncio nesses casos. O aborto é um tópico forte porque há um grande silêncio em seu redor.
Tem então a noção de que por ser um tema ainda tabu o seu filme pode criar uma discussão?
Tenho essa esperança...E o tabu está em todo o lado. Tenho dado muitas entrevistas e percebo que há muita gente a ficar chocada com estes problemas. Muita gente vem ter comigo e diz: "fiz um aborto". Sinto que têm necessidade de pôr cá para fora esse problema.
Depois de Chloè Zhao em Nomadland ter vencido os Óscares, Julia Ducournau em Cannes ter conquistado a Palma de Ouro com Titane, sente que a partir de agora estão lançados os dados para começarmos a ver cinema com menos dose de masculinidade tóxica a ter luz verde dos financiadores?
Não sei...vai continuar sempre a existir muitas maneiras de contar histórias. O que é preciso é liberdade e diversos pontos de vista. Mas estamos a abrir uma porta para convencer a indústria que é muito bom termos uma pluralidade de vozes e diversas maneiras de contar histórias de mulheres. Por outro lado, sinto que as mulheres vão continuar a ser objetos no cinema, sinto que não acabou ainda.
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