“As polémicas são salutares, é sinal de que as pessoas se preocupam com a Coleção de Arte Contemporânea"
Quantas obras existem na Coleção de Arte Contemporânea do Estado (CACE)? Faz parte da sua missão fazer o inventário, já está concluído?
Nós temos cerca de 3.200 obras, já com a incorporação da coleção Ellipse e da coleção BPP, e o trabalho de inventariação tem vindo a ser consolidado, sendo que agora temos que trabalhar todos os novos núcleos que vão entrar, que foram integrados ou incorporados na Coleção de Arte Contemporânea do Estado. O que nós fizemos, para além daquilo que é o trabalho interno de inventariação, porque as obras têm que ter um despacho de incorporação, e todo um tratamento, quer nas plataformas internas que nós trabalhamos, que é a raiz, quer no próprio website. Ou seja, o website estava criado quando eu entrei para dirigir a coleção, mas havia muitas fichas ainda em falta. Queremos reforçar a equipa para que esse trabalho possa ser feito mais rapidamente. Portanto, nós temos estado a fazer esse trabalho consecutivamente, em paralelo com outras atividades que temos, nomeadamente com a programação expositiva. Mas sim, estamos a fazer esse trabalho de inventariação.
Durante um tempo não se sabia quantas obras havia e onde estavam exatamente. Nesta altura já se consegue fazer um retrato mais fiel daquilo que compõe a coleção e onde estão as obras?
Sim, completamente. Foi isso que nós fizemos, quer com uma maior proximidade às entidades depositárias, ou seja, pela sua natureza, a coleção estava depositada em vários locais, em vários centros culturais e também organismos do Estado, porque tinha essa missão também, de privilegiar de alguma forma a identidade e colocar aqui uma marca representativa da arte portuguesa nas entidades, quer tuteladas pelo Ministério da Cultura, quer por outros organismos do Estado. E, portanto, aquilo que se fez foi essa verificação e essa identificação de quais os acervos, quantas peças. Estamos a trabalhar na constituição ou na realização de novos protocolos, para que, de uma forma muito clara, fiquem identificadas todas as obras que estão depositadas por uma determinada entidade depositária.
Há obras da coleção no estrangeiro?
Sim, há obras em algumas embaixadas. Houve também sempre uma relação muito forte com o Ministério dos Negócios Estrangeiros. E, mais uma vez, por essa questão de ter uma representatividade nos organismos do Estado.
A CACE vai continuar espalhada por várias entidades?
As maiores são a Fundação de Serralves, temos o município e a Universidade de Aveiro, que tem também um depósito das nossas obras. Temos o MAC-CCB, o próprio MNAC - Museu Nacional de Arte Contemporânea, e, portanto, o objetivo é fortalecer essa relação entre proprietários e entidade depositária e permitir que também outras instituições possam pedir empréstimos dessas obras à CACE.
Ou seja, aquilo que nós temos é não só o crescimento da coleção, tratá-la condignamente, mas por outro lado apoiar instituições que não tenham acervo próprio, que possam mostrar obras de arte portuguesa recorrendo à coleção de arte contemporânea, nomeadamente através da Rede Portuguesa da Arte Contemporânea (RPAC).
Essa rede, criada em 2021, e às quais entidades culturais de todo o país podem aderir, está a crescer?
Tem vindo a crescer, estão sempre a ser integradas. Houve uma primeira fase em que teriam que se inscrever, havia um processo de avaliação e agora a adesão faz-se de uma outra forma, ou seja, faz-se de uma forma mais fluida. Eu agora não tenho aqui a contabilidade do número de entidades, mas já são bastantes [são 67 entidades e 76 equipamentos].
A criação desta rede acabou de vez com a ideia de se concentrar a coleção num museu, nomeadamente no Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado?
Sim, porque do nosso ponto de vista não faz sentido colocar a coleção num só espaço, a coleção tem que estar disponível para a descentralização. O que nós temos sempre é a disponibilidade de fazer cedências e empréstimos de determinadas obras para fazer exposições. Até pela natureza da coleção. A coleção teve sempre este caráter de apoiar as estruturas museológicas e várias delas. Concentrar num só espaço não parece que seja contemporâneo – temos de trabalhar muito em rede e temos de trabalhar muito numa base de sustentabilidade –, para além das relações que nós temos, já disse, com as várias entidades e que queremos manter. Portanto, faz mais sentido que a obra esteja disponível para todo o território.
Esta estratégia de dispersão e de itinerância da coleção é para levar a arte contemporânea a todo o país, a todas as regiões?
Certo, há dois dados. Por um lado, estes depósitos que permitem que as entidades possam dispor dessas obras quando não têm coleção própria, que é o mais acertado. E, por outro lado, nós temos uma programação expositiva própria, ou seja, a própria Coleção de Arte Contemporânea do Estado tem uma programação em que nós desenvolvemos cada ano um determinado número de projetos em parceria com câmaras municipais, com centros de arte, para mostrar não só as aquisições, mas as novas aquisições cruzadas com obras já pertencentes ao seu acervo.
Em 2019 foi criada a Comissão de Aquisição de Arte Contemporânea do Estado (CAAC) de que é coordenadora e que retomou as compras públicas após anos de congelamento. Em 2023 e 2024 foram investidos 800 mil euros por ano. Já há valor para o biénio 2025-2026?
Em princípio temos o mesmo valor para cada ano para o programa anual de aquisição. Sendo que a comissão é constituída a cada dois anos. Mas o valor do orçamento para cada ano está nesse montante. Ou seja, foi crescendo progressivamente. Começámos em 2019 com um orçamento de 300 mil euros, depois passámos, no ano seguinte, para 500 mil, depois para 650 mil, depois para 800 mil. Houve um ano que foi um milhão de euros, mas 200 mil eram para a circulação das nossas exposições. E depois fixámos nos 800 mil.
Anunciaram recentemente as aquisições de 2024. Em relação a 2025, esse processo ainda vai iniciar-se, ou é preciso que seja nomeada uma nova comissão?
Já foi designada uma nova comissão e já estamos a começar as reuniões preparatórias.
E mantém-se a composição?
Não, a cada dois anos é nova. Portanto, agora temos uma nova composição. Vai ser a Andreia Magalhães, curadora e professora universitária que dirige o Centro de Arte Oliva em São João da Madeira; a Francisca Portugal, que é curadora independente; o Nuno Crespo, que será o representante da área da Cultura, que é curador e professor universitário; o Pedro Barateiro, artista; o Sérgio Fazenda Rodrigues, que é arquiteto, curador e diretor de um espaço independente em Lisboa; a Susana Lourenço Marques, que é uma historiadora de arte, curadora e professora universitária da Faculdade de Belas Artes do Porto; e eu, enquanto coordenadora. Portanto, agora nestes dois anos, será esta a nova comissão que irá desenvolver trabalhos para definir qual vai ser a seleção de obras a apresentar em relatório.
Quando será feita esta apresentação?
Tudo isto foi criado pela altura do despacho que criou a Comissão de Aquisição de Arte Contemporânea em 2019 e, depois, em 2023, a Comissão da Aquisição passou para a tutela da Museus e Monumentos de Portugal, que é quem tutela também a Coleção da Arte Contemporânea do Estado. Todas as tarefas, a missão e o próprio funcionamento desta comissão está descrita no decreto-lei da criação da própria Museus e Monumentos de Portugal. Nós temos que entregar até 30 de julho um relatório ao presidente do conselho de administração da Museus e Monumentos, que é aprovado e que depois vai ser homologado pela pasta da Cultura, ou seja, pela secretaria de Estado ou o Ministério, o ministro ou a ministra que estejam em funções.
Estas aquisições levantam sempre questões, são polémicas. Os critérios estão bem definidos? Qual é a estratégia para as novas aquisições?
As polémicas são muito salutares, porque é sinal de que as pessoas se preocupam com a Coleção da Arte Contemporânea e acho isso muito favorável. E também seria difícil que todas as pessoas ficassem contentes. O próprio ecossistema artístico tem aqui sempre muito desentendimento e é salutar que as pessoas possam falar sobre a própria aquisição e debatê-la. Nós mantemos uma política de transparência, ou seja, disponibilizamos os relatórios com toda a argumentação. É um trabalho que eu considero que é muito bem feito, ou seja, não são escolhas aleatórias, está fundamentado o contexto na apresentação que é feita pela própria comissão. Estão lá os valores, a quem se compra, portanto é tudo muito transparente.
E em relação aos critérios?
Sim, nós temos alguns critérios e depois depende sempre de cada comissão. Os critérios que estão definidos têm a ver com o valor artístico conceptual do trabalho, depois o panorama artístico contemporâneo, a experiência profissional do artista, a coerência com o acervo da arte contemporânea do Estado e também a relevância da obra na internacionalização da arte portuguesa contemporânea. Portanto, aquilo que nós fazemos é seguir estes critérios e, como eu estava a dizer, tem a ver também depois com as orientações que cada comissão pretende tomar. Em 2019 nós decidimos, porque havia uma lacuna grande de aquisições, que não iríamos comprar artistas já representados na coleção de arte contemporânea. Aquilo que fizemos foi sobretudo olhar para a geração de 1990 e todas as gerações posteriores. Na primeira comissão foi assim. Na segunda comissão houve uma tentativa de equilibrar pelo género, homens, mulheres, e houve muito esse desafio. E, por outro lado, olhar mais para os emergentes. Já a partir do segundo ano, da segunda comissão, a tentativa foi também olhar para as falhas, as lacunas de artistas históricos. E, por outro lado, nesta última comissão, estamos a falar de 2023-2024, esse equilíbrio de género está também presente, além do equilíbrio de reforços de artistas já representados com novos artistas que não estavam representados na coleção. Diria que nestes últimos dois anos as novas aquisições estão muito bem equilibradas entre os novos e os reforços. Temos tentado equilibrar entre históricos, meia carreira e emergentes.
Será essa também a orientação para a nova comissão?
Nós discutimos e depois vamos ver aquilo que consideramos que faz mais falta ou que faz mais sentido, no momento atual, para fazer o reforço da coleção.
As decisões têm que ser unânimes?
Somos sete membros, as escolhas têm que ter mais de quatro votos, seja da obra, seja do artista. Os artistas são nomeados pela comissão e temos que estar todos muito confortáveis com as escolhas, porque a escolha vai ser coletiva. E isso eu prezo sempre, mesmo na escrita dos relatórios, que os textos sejam coletivos. Ou seja, a comissão tem que atuar a uma só voz, ainda que, claramente, haja debate e diálogo e muitas vezes discussão. Não digo acesa, mas faz parte do diálogo. E é bom que assim seja, que haja pensamento crítico, que sejam debatidas, que sejam muito bem pensadas.
Há quem critique que a Coleção de Arte Contemporânea do Estado não acompanha o percurso dos artistas, compra apenas obras de início de carreira. É isso que acontece e que estão a tentar colmatar?
Em termos de primeiras aquisições, artistas históricos, como Silvestre Pestana, não estavam representados na coleção. O Jorge Molder, por exemplo, não estava representado. O Michael Biberstein também não. O que nós fizemos foi não atender àqueles que já estavam, não reforçar núcleos, mas sobretudo ver quem não estava presente. Júlia Ventura também, ou seja, muitos e muitos artistas não estavam representado na coleção. Portanto, o nosso olhar não estava em ter obras de diferentes décadas de um mesmo artista, mas, sobretudo, ter uma representatividade alargada, e isso é um dado. Eu percebo que os artistas queiram que a sua obra esteja muito bem representada na coleção, mas a comunidade é mais vasta e nós temos que olhar ao coletivo. A minha presença na própria coordenação da comissão tem muito a ver com isso, de zelar um pouco para uma representatividade alargada.
Também escolhem os artistas consoante as obras que estão disponíveis para aquisição?
Aquilo que fazemos primeiro é, depois de identificarmos os artistas dos quais nos interessa adquirir obras, contactamos esses artistas para perguntar por quem é que estão representados. Funcionamos aqui no primeiro mercado, ou seja, no caso dos artistas estarem representados em galerias, perguntamos que galerias os representam e, mediante a sua indicação, contactamos as galerias ou então, no caso de não terem representação, adquirimos diretamente aos próprios artistas. Funcionamos dessa forma.
Nalguns casos nós pedimos portfolios com obras, com um número, que também é definido por cada comissão, balizadas de todo o percurso do artista ou então de uma determinada época que nós consideramos que ainda não está representada na coleção. Ou então, identificamos logo uma peça que nos interessa, sabemos que está disponível e agimos nesse sentido. Ou seja, damos essa informação de que nos interessa ver aquela obra ou obras do mesmo período para colmatar.
E também compram a colecionadores privados e em leilões?
Não, não temos essa prática de comprar a colecionadores privados. Não quer dizer que no futuro não o possamos fazer, também funcionamos a caso a caso. Em relação aos leilões, que é uma questão também muito falada, nós não vamos a leilões pelo modo de funcionamento da comissão. Estamos sujeitos à contratação pública, temos que apresentar um relatório em julho e a aquisição só se faz nos meses seguintes. Portanto, nós não temos essa flexibilidade, a não ser que seja uma compra extraordinária. Aconteceu no caso da Paula Rego, em que fizemos uma compra em 2022 - O Impostor, que hoje está no MAC-CCB -, ou a Graça Morais, que está no Museu do Coa. Há essa possibilidade, mas a forma que temos de trabalhar é, sobretudo, com as galerias e com os artistas, no caso de não serem representados.
Na área da divulgação da coleção do Estado, o que têm feito?
Entendemos, logo desde 2019, que a coleção tinha que estar presente em todo o país. E, portanto, definimos, na altura, que seria bom termos exposições, a Norte, Centro, Sul e ilhas – ainda não estivemos nas ilhas, mas havemos de fazer uma outra exposição. E esse foi o primeiro entendimento. Na altura decidiu-se que seria a própria comissão que iria comissariar. E isso, nas nossas duas, três primeiras exposições aconteceu. Ou seja, não fui eu a curadora das exposições, mas foram membros que pertenciam às comissões.
Também quisemos trazer novos curadores. O ideal é que fossem pessoas externas também à própria coleção. Mas, muitas vezes, também por questões orçamentais e de logística é mais fácil que sejam da comissão, mas gostamos desse modelo mais diverso.
Inicialmente estava previsto que as novas aquisições fossem expostas numa mostra conjunta.
Essa era a ideia, que a comissão tinha que fazer não só a seleção, como fazer as exposições com as aquisições. Só que se verificou, e até por entendimento conjunto das primeiras comissões, que não seria uma boa ideia, que não seria bom fazer exposições só de aquisições. Sempre em relação também com o próprio Ministério. Ou seja, que seria muito bom trabalhar temáticas e conteúdos juntando as novas aquisições a obras do acervo. Portanto, verificámos que essa ideia inicial não era a melhor ideia, porque íamos estar a fazer exposições sem muito interesse. Quer nas aquisições de 2019, quer nas de 2020, não haveria um fio condutor ou um fio de pensamento para a apresentação destas exposições. Não é só a questão de estarmos a visitar o país e a apresentar novas obras, é apresentar as obras de uma forma que as pessoas se possam interessar por elas. Criar esse interesse por todo o país e sobretudo em zonas que possam não ter tanta oferta cultural, é isso que nos interessa. Portanto, estivemos primeiro em Foz Coa, em Castelo Branco, Beja, Aveiro. Vamos estar agora em Tavira - com uma exposição que inaugura no dia 5 de abril -, e também aqui no Museu de Etnologia. É a primeira vez que temos uma exposição em Lisboa.
O que vão mostrar nesta exposição no Museu Nacional de Etnologia que inaugura no dia 10 de abril?
Esta exposição tem a ver com essa necessidade que tínhamos de pensar o tema do passado colonial e como é que ele se expressa, ou como é que os artistas, sejam portugueses da diáspora ou não, pensam estas temáticas. E apresentamos um conjunto muito interseccional e muito intergeracional com artistas de diferentes idades e também com diferentes práticas artísticas para pensarmos o que é que deve ser um museu aberto a discutir estas questões que são muito pertinentes no tempo atual. Chama-se PÓS-MUSEU: ‘A’ de Ausência e fala disso mesmo, daquilo que são as experiências, a própria biografia, a identidade, como é que os artistas trabalham isso hoje.
É com muito interesse que eu vejo esta forma também de dialogarmos com o Museu de Etnologia, que é um museu também tutelado pela Museus e Monumentos de Portugal. Interessa-nos criar estas sinergias, colocar museus e estruturas de diferentes áreas a dialogar. Estamos em diálogo também com outra exposição que está no piso de cima aqui, no Museu de Etnologia, sobre a descolonização, e faz todo o sentido tratar ao mesmo tempo, de um ponto de vista mais estético e mais plástico, com obras de artistas contemporâneos que pertencem à coleção. Dá-se a coincidência de o museu ter a mesma idade que a coleção do Estado, nós vamos fazer 50 anos para o ano.
Aqui foi feita também uma mostra da arte negra nessa data, foi a exposição inaugural do próprio museu em 1976, portanto, interessa-nos ver também como é que essa questão foi tratada, quer com os artistas do Modernismo, quer com artistas contemporâneos.
E como é que Almada Negreiros surge nesta exposição?
O Almada não está aqui, não temos nenhuma obra do Almada Negreiros presente, mas é um bom exemplo de como muitas vezes a biografia dos artistas não é tida em consideração ou pode não ter sido ainda tão estudada. E é o caso, eu faço essa ligação mental, é uma presença fantasma com o caso do René Tavares, um artista são-tomense que nos dá representações da vida na roça, representações familiares e também um olhar, crítico e lúdico, com a questão dos descobrimentos. E, na verdade, o próprio Almada Negreiros nasceu em São Tomé, na Roça da Saudade, e interessava-me recuperar aquilo que é muitas vezes o olhar que nós temos sobre a própria história de um artista que fica muito associada à Europa, e não se reconhece toda a experiência que possa ter tido noutros países e noutros continentes. Interessava-me também abordar essas questões.