As mulheres no labirinto do verão sueco
“Em breve será verão!”, suspiram os amantes. “Dias de verão, oh, encantadora estação dos lilases...”, diz um marido para a mulher, citando Strindberg no comboio quando o calor aperta. “Deixa-os gozar o verão. Depressa a dor, a sensatez e todas essas coisas irão chegar”, comenta um raro homem sábio à porta de casa, perante a fuga de outro par de jovens amantes. Ora bem: o verão é a estação do ano que combina com a juventude, e como se afere por estas frases tiradas de três filmes dos primórdios da obra de Ingmar Bergman, é também a estação que comunica a busca de um cineasta pela luz da esperança, quando a amargura da vida ainda não nos derrotou completamente. São frases soltas de Cidade Portuária (1948), A Sede (1949) e Mulheres que Esperam (1952), títulos inéditos nas salas portuguesas, que surgem agora no âmbito da grande retrospetiva organizada pela Leopardo filmes, ajudando a corrigir a lacuna que ainda existe em relação à alvorada criativa do realizador sueco.
Quase sempre esquecida nas frondosas observações em torno do cinema de Bergman, a primeira fase da sua filmografia contém várias chaves para se perceber o que veio a constituir o cerne e evolução de uma prática repleta de motivos fixos, recorrências temáticas e ideias obsessivas. Poderia falar-vos aqui do lugar dos espelhos, do movimento hipnótico dos flashbacks, dos barcos que sinalizam o idílio de um verão eterno, das vertigens oníricas ou do verbalizado medo da morte. Mas o que mais me prendeu a atenção ao descobrir estes três filmes foi a constatação de que as mulheres, em todos eles, são agentes da narrativa. Da revolta íntima à expressão sincera da infelicidade, do suicídio ao aborto, da assunção do desejo à conciliação com o cenário amoroso possível, é no rosto feminino que está o vórtice de uma inquietação calada ou manifesta.
Talvez consequentemente – e ainda que não se trate de um redutor cálculo masculino/feminino –, os homens, nesta fase, são personagens sem brilho, imaturos, muitas vezes pretensiosos ou formatados pela masculinidade temperamental. Ao contrário delas, que, para lá de qualquer perfil de classe, são figuras portadoras de nuances de tristeza e complexidade impossíveis de resumir em duas linhas: aos olhos de Bergman, as mulheres transportam a memória como quem carrega vida no ventre (os flashbacks partem sempre delas, a não ser que sejam espoletados pela própria ausência), e na sua solidão ou entreajuda desenham-se diferentes abordagens do amor.
Concretizando, Cidade Portuária será, desde logo, um exemplo marcante de sororidade. Nele, uma jovem que passou por um reformatório tenta ajudar uma amiga após um aborto clandestino, e nesse gesto arrisca voltar ao desespero em que a encontrámos no início: o filme começa com a sua tentativa de suicídio no mesmo porto onde desembarca o marinheiro por quem virá a apaixonar-se. É o mais próximo que Bergman esteve do neorrealismo, por sua vez, colocando a tónica na miséria dos afetos familiares. Nas discussões dos pais desta rapariga, que figuram como a causa dos seus traumas, o realizador espelhou o subtexto agressivo da imagem do seu próprio pai, pastor luterano – esse produtivo tormento que está espalhado um pouco por toda a sua obra.
É em Cidade Portuária que se ouve “Em breve será verão!”, porque, apesar do pessimismo do quadro, ainda se forja a esperança no dito encontro entre um homem e uma mulher. Na mesma medida em que o anterior Uma Luz nas Trevas (1948) mostrava o poder curativo do amor na tragédia de um pianista cego; com a diferença que, nesse caso, os amantes partem, enquanto os de Cidade Portuária decidem ficar.
Os que partem, partem de comboio, à semelhança do casal que, em A Sede, regressa a Estocolmo vindo de Itália, testemunhando as ruínas da Segunda Guerra Mundial pela janela da carruagem. Neste filme, o casamento já é um estudo de caso por excelência, com a sua natureza infernal a ser a única alternativa à solidão. “Os dois sexos estão separados por um mar de lágrimas e mal-entendidos", diz-se a certa altura. E essa mensagem subliminar assume inesperadas configurações hitchcockianas, captadas pelo diretor de fotografia Gunnar Fischer, que trabalhou com Bergman ao longo de todo este período (até 1960), oferecendo uma unidade visual inequívoca ao imaginário da intimidade pungida.
Isso mesmo se testemunha nos magníficos filmes seguintes, Rumo à Felicidade (1950) e Um Verão de Amor (1951). Mas porventura a maior surpresa dentro dos inéditos que nos chegam será Mulheres que Esperam, justamente o título que parece encerrar os anos formativos de Ingmar Bergman, antes do “escandaloso” Mónica e o Desejo (1953), misturando elementos de um classicismo sofisticado – os flashbacks em jeito de Carta a Três Mulheres (1949), de Joseph L. Mankiewicz – com um jogo de visões interiores femininas que desafiam o lirismo romântico.
Em Mulheres que Esperam está a síntese graciosa do protagonismo delas: à volta de uma mesa de chá e costura contam-se histórias a meio caminho entre o desejo da carne, a imperfeição do amor e a comédia conjugal. No seu deslumbrante movimento vamos sentindo uma estrutura musical que equilibra a angústia com a ironia. O cineasta que já então experimentara o barroquismo do autorretrato em A Prisão (1949) fechava assim, com chave de ouro, a antecâmara de uma obra plena de desassossego existencial.
Teatro, meu amor
Ainda no plano das origens, é de notar que os ditos anos formativos de Bergman se centraram mais intensamente no teatro do que no cinema – o início da década de 40 correspondeu, aliás, a uma etapa de importante desenvolvimento da produção teatral na Suécia, que se traduziu numa contaminação artística entre o palco e o grande ecrã, desde logo ao nível das equipas. Veja-se o caso do crítico de teatro Herbert Grevenius, que se tornou argumentista e colaborador de Bergman em filmes como os referidos A Sede e Um Verão de Amor. O próprio realizador manteve uma ligação profunda aos palcos (menos conhecida fora da Suécia), inclusive como diretor do Teatro de Helsingborg, aos 26 anos, e mais tarde do Real Teatro Dramático de Estocolmo.
É, pois, de teatro que se fala em Depois do Ensaio (1984), o quarto filme inédito da retrospetiva a partir de hoje em sala. Feito para a televisão, aqui se regista a confissão do amor de Bergman pela sua trupe: “Adoro os atores”, diz o alter ego do cineasta, Erland Josephson, no papel de um encenador que, no silêncio pós-ensaio, é visitado por uma atriz (Lena Olin, muito jovem), filha de uma antiga amante (extraordinária Ingrid Thulin), com quem reflete sobre a pureza e impureza dessa arte fantasmagórica... Não se tratou de um fim de ato, mas do seu assombroso ensaio.