Em 1944, organizou-se em Macau uma exposição de pintura e caligrafia com o objetivo de arrecadar fundos para a Associação de Beneficência Tung Sin Tong, a fim de distribuir sopa a crianças necessitadas.
Em 1944, organizou-se em Macau uma exposição de pintura e caligrafia com o objetivo de arrecadar fundos para a Associação de Beneficência Tung Sin Tong, a fim de distribuir sopa a crianças necessitadas.

Arca de Salvação, Ábaco e Porão Secreto: Resistência Silenciosa de Macau no Turbilhão da Guerra contra o Japão

O valor desta narrativa singular da resistência de Macau contra a agressão permanece intemporal. Demonstra a resiliência cultural, mantendo a consciência nacional nas fendas do direito.
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Quando os fumos da ocupação de Cantão, em 1938, se aproximaram, o minúsculo território de Macau, com apenas 6 quilómetros quadrados, transformou-se subitamente numa Arca de Noé no meio da guerra. A sua população explodiu de 140.000 para cerca de 500.000 no início da década de 1940, atingindo uma densidade impressionante de 83.000 pessoas por km², muito superior aos 32.000 de Hong Kong no mesmo período. Sob a dupla pressão da administração colonial e do rígido bloqueio japonês, este enclave neutro não se resignou ao silêncio. Pelo contrário, manifestou uma vitalidade impressionante e uma forma única de resistência - um movimento não militar, mobilizado sem fumo de pólvora, mas com raízes profundas.

A forma mais premente de resistência foi a ação humanitária. Instituições como o Hospital Kiang Wu e o Tong Sin Tong tornaram-se centros nevrálgicos de socorro, sustentando a esperança de sobrevivência dos refugiados. As fichas de bambu emitidas pelo Tong Sin Tong são um registo impiedoso do sofrimento: só em 1942, distribuíram a 127.000 pessoas a sopa de que dependia a sua sobrevivência. O Templo Kun Iam abriu as suas portas para acolher crianças deslocadas. A cena pungente de escreverem no chão de tijolo, com cinzas de incenso, os versos do poema épico “O Rio Transbordante de Vermelho” (Man Jiang Hong), transformou-se numa aula singular de patriotismo. A viúva Zhou, da Calçada da Nossa Senhora das Dores, lavou durante oito anos, dia após dia, ligaduras ensanguentadas para o hospital, doando todas as escassas moedas que ganhava para a frente de combate. A sua figura é o epítome da resiliência e abnegação dos civis de Macau.

A cultura tornou-se uma arma afiada contra o invasor. Mestres da pintura da Escola de Lingnan, como Gao Jianfu e Situ Qi, empunharam os pincéis como lanças, criando obras sobre a guerra de resistência, destinadas a inflamar o espírito nacional. No palco do Teatro Dom Pedro V e outros, o célebre ator de ópera cantonense Xue Juexian, representava com ímpeto e emoção peças como “A Grande Aliança dos Seis Estados” para angariar fundos para os soldados na frente de batalha. O editor do jornal Va Kio, Chen Junbao, inventou uma “técnica de encriptação por espaçamento”: manipulava os espaços entre parágrafos nas aparentemente banais reportagens financeiras para transmitir informações cruciais sobre as marés, essenciais para rotas de fuga e abastecimento.

Sob o apertado bloqueio japonês (com preços a disparar para cem vezes os valores pré-guerra), abrir canais secretos para o contrabando de material estratégico tornou-se uma forma de resistência vital. Na antiga vila de Mong Há, ainda hoje se veem na casca de uma centenária árvore banyan as marcas de faca indicando os horários das marés, guiando as rotas marítimas clandestinas. O barco “Nan Hai” do pescador Ah Beng tinha um engenhoso porão duplo: o superior, cheio de peixe salgado como camuflagem; o inferior, escondendo penicilina. Em caso de inspeção japonesa, derramava de propósito o molho pungente de camarão para disfarçar o cheiro do medicamento. Como testemunho da sagacidade popular, ainda hoje se ouve o ditado “O molho de camarão bem derramado vale mais que cem canhões!”. Já a Associação Comercial de Macau organizava ativamente a subscrição de títulos de guerra para salvar o país. Houve comerciantes que penhoraram joias de família, dizendo que “Os objetos têm preço; a pátria, não”. Os estudantes copiavam mapas topográficos com tinta invisível nas folhas de rosto da Bíblia; as estudantes tricotavam meias de lã para a frente, com a firme convicção “A Resistência Vencerá!” bordada na sola.

Pombas e balões, símbolos de paz e esperança, saltados no dia 3 de setembro de 2025, em Pequim, durante a cerimónia comemorativa do 80.º aniversário da vitória da Guerra de Resistência contra a Agressão Japonesa e da Vitória na Guerra Antifascista Mundial.
Pombas e balões, símbolos de paz e esperança, saltados no dia 3 de setembro de 2025, em Pequim, durante a cerimónia comemorativa do 80.º aniversário da vitória da Guerra de Resistência contra a Agressão Japonesa e da Vitória na Guerra Antifascista Mundial.

A rede de resistência de Macau estava profundamente integrada no esforço Internacional Antifascista. O gesto da enfermeira macaense Wong Huan Heong em 1943 é o maior símbolo disso: guiada pelo farol da Guia, partiu apressadamente para norte, de noite, para se juntar ao corpo médico dos Tigres Voadores (o 1.º Grupo Voluntário Americano, dos Estados Unidos), tornando-se um episódio emblemático da cooperação sino-americana em tempo de guerra. Esta herança transgeracional prova que Macau não é um mero recanto geográfico isolado, mas sim uma ponte permanente que liga a China ao mundo, difundindo o espírito de solidariedade e resistência.

Olhando para trás, do alto da história, o valor desta narrativa singular da resistência de Macau permanece intemporal, demonstrando a espantosa resiliência cultural que brotou de uma zona de soberania difusa, mantendo a consciência nacional nas fendas do direito. Esta narrativa atesta o poder avassalador da ação popular: a luz de incontáveis pessoas comuns convergiu na tocha que manteve viva a civilização, da tigela de sopa do Tong Sin Tong ao par de meias tricotado pelas estudantes. Revela também a transformação criativa do legado colonial: santuários católicos, as colunas barrocas do Teatro D. Pedro V e os beirais do Templo de A-Má compuseram uma sinfonia de convivência civilizacional. Este hibridismo cultural revelou-se um antídoto contra o extremismo nacionalista. Sem fogo de artilharia, sem o clarão das espadas, a história da resistência de Macau revela a força poderosa que, nas horas mais sombrias, sobreviveu nas fendas, acendeu centelhas com engenho e tenacidade, e construiu pontes com o sacrifício de vidas - uma epopeia da nação, escrita por milhares de pessoas comuns.

Texto de Wu Zhiliang, Académico em História e Cultura de Macau

Uma iniciativa do "Macao Daily News"

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