Ainda no eco do triunfo de Parasitas, e numa altura em que se continua a fazer história nos Óscares com seis nomeados de ascendência asiática, entre atores e realizadores, evocar o nome de Anna May Wong (1905-1961) faz mais sentido do que nunca. Falamos, afinal, da primeira estrela sino-americana de Hollywood, cuja carreira não se cingiu a essa indústria. Dito assim, parece que tudo foram rosas mas, na verdade, não há muito que tenha contribuído para a felicidade de Wong. Pelo contrário, o seu manifesto desagrado com as injustiças do sistema dos grandes estúdios foi a atitude crucial que permitiu abrir caminho ao respeito pelo talento asiático. Se hoje o celebramos cada vez mais é porque alguém, em algum momento, esteve acima das regras do jogo das Metro-Goldwyn-Mayers desta vida e se manteve na luta pelas oportunidades - pode não ter provocado uma revolução, mas fez mossa..Quem viu a minissérie Hollywood (Netflix), do showrunner Ryan Murphy, terá umas pistas sobre o karma desta mulher. Aí, interpretada por Michelle Krusiec, descobrimo-la já como uma atriz ausente do calendário das produções, entregue à bebida e aos fantasmas de outra era, que vai ser recuperada por um jovem fã e aspirante a realizador empenhado em fazer o seu primeiro filme. É a propósito desse regresso "justiceiro" à grande tela que vem ao de cima um dos episódios mais tristes e conhecidos da carreira dela, aqui devidamente retratado: quando fez o casting para o papel principal de Terra Bendita (1937) - a sua grande chance de quebrar um ciclo de personagens pouco complexas - e este acabou entregue à atriz de origem germânica Luise Rainer, que não só foi maquilhada para parecer chinesa (exemplo clássico da prática do yellowface), como viria a vencer o seu segundo Óscar....Adaptado de um bestseller da então futura Nobel Pearl S. Buck, Terra Bendita não podia ter como protagonista uma mulher de ascendência asiática (mesmo que Wong fosse já uma reconhecida movie star) pelo simples facto de o seu par romântico ser um ator branco. Ou seja, a MGM não estava disposta a contornar o Código Hays, que proibia a representação da intimidade entre atores de etnias diferentes. Chegaram a propor-lhe o papel secundário de uma cortesã no filme, mas já não estava para isso..Pertencente à segunda geração de uma família chinesa nascida nos Estados Unidos, Anna May Wong cresceu em Los Angeles, lugar privilegiado onde decorriam as rodagens da maior parte dos filmes. Não admira que aos 14 anos, e depois de tanto andar atrás de produtores a implorar por papéis, conseguisse a sua primeira figuração: aparece a carregar uma lanterna em O Farol Vermelho (1919), filme com a grandiosa estrela Alla Nazimova. Daí ao seu lançamento como protagonista de uma das primeiras produções a cores do cinema mudo, The Toll of the Sea (1922) foi um saltinho. Com esse filme, vagamente inspirado na ópera Madame Butterfly, ela despertou, desde logo, o interesse da crítica americana. "Completamente inconsciente da câmara, com um refinado sentido de proporção e notável rigor pantomímico, ela faz da abandonada pequena Lotus Flower uma figura genuinamente apelativa e credível. Devia ser vista de novo e muitas vezes no ecrã", escreveu o The New York Times. .Wong seria vista muitas vezes no ecrã, é certo, embora não com essa aura de empatia. Os papéis seguintes assentaram quase sempre na sua aparência "exótica", assumindo os estereótipos da mulher servil ou prostituta. Exemplo canónico disso é o enorme sucesso O Ladrão de Bagdad (1924), de Raoul Walsh, com Douglas Fairbanks, em que ela veste a pele de uma escrava mongol, a típica dragon lady misteriosa e sensual. A crítica voltou a render-se, mas isso nada fez pela sua valorização enquanto atriz real, liberta dos clichés associados às personagens asiáticas..Em 1928, Wong cansou-se destas limitações impostas por uma América segregacionista - inclusive o impedimento de partilhar um simples beijo no ecrã com homens brancos - e trocou Hollywood pela Europa. Aí começou por fazer sensação em filmes alemães, destacou-se também no Reino Unido, sobretudo com Piccadilly (1929) e o papel de uma dançarina que se torna a atração principal de um clube noturno, e cruzou-se com figuras como Leni Riefenstahl e Marlene Dietrich. Há mesmo uma fotografia das três, tirada pelo fotógrafo Alfred Eisenstaedt, num glamoroso sarau em Berlim, que serviu de ponto de partida para o romance Delayed Rays of a Star (2019), de Amanda Lee Koe. No ano dessa foto, 1928, ainda nem se imaginava que Riefenstahl se tornaria a realizadora predileta de Hitler, ou que Dietrich se converteria na musa de Josef von Sternberg em terras americanas. O que em termos concretos significa que Anna May Wong era a estrela daquela fotografia, naquele momento..Nos anos 1930, entusiasmada com a oferta de um contrato por parte dos estúdios Paramount Pictures, regressou a Hollywood, embalada pela revigorante experiência europeia. Mas o que soava a promessa de mudança de estatuto depressa se revelou mais do mesmo, e ela não deixou de mostrar a sua insatisfação. A partir daí, Wong oscilou entre os Estados Unidos e a Europa, ficando como filme americano de referência, nessa altura, O Expresso de Xangai (1932), de Sternberg, em que surge "confinada" numa carruagem de primeira classe ao lado da amiga Dietrich, ambas com sugestiva química queer, que levantou burburinho... De resto, nestas lides hollywoodescas não foi só a estrela alemã que se afirmou como um ícone de moda. Também o apurado sentido de estilo de Wong a levou a ser eleita pela Mayfair Mannequin Society of New York "a mulher mais bem-vestida do mundo", cimentando uma imagem de celebridade e fazendo capas de revista um pouco por toda a parte, da britânica Film Weekly à americana Look. Em 2020, numa iniciativa da Time que nomeou as 100 mulheres mais influentes do século passado, a atriz foi eleita a mulher do ano 1928, com uma bela ilustração do seu rosto numa capa virtual..Seja como for, o malfadado episódio à volta do casting de Terra Bendita ficou como uma injustiça irreparável; mesmo que a minissérie Hollywood, enquanto proposta de realidade alternativa, lhe tenha dado uma bela desforra. Homenagem e justiça feitas pela pena de Ryan Murphy..Eternamente desiludida com a indústria americana, em 1936 Wong escolheria ainda outro destino temporário: a China. Uma viagem que acabou por ser tão agridoce como quase tudo ao longo da sua vida. Por um lado, foi recebida como uma heroína em vários locais (as pessoas perguntavam-se se ela "existia" para além dos filmes), por outro, era acusada pelo governo chinês de retratar de forma negativa os seus ancestrais. A experiência ficou registada num pequeno documentário televisivo, Bold Journey: Native Land (1957), e em vários artigos que escreveu para o jornal New York Herald Tribune..Regressada da China, conseguiria alguns papéis mais relevantes em filmes série B, como uma médica em King of Chinatown (1939), e mais tarde, com The Gallery of Madame Liu-Tsong (1951), tornou-se a primeira atriz sino-americana a protagonizar uma série televisiva..Anna May Wong morreu com apenas 56 anos (um ataque cardíaco durante o sono), depois de, como costumava dizer, ter morrido "mil mortes" no grande ecrã. Nunca se conformou com o que Hollywood esperava dela e expressou publicamente esse sentimento de frustração. A sua estrela no Passeio da Fama foi a única honra que conheceu em vida, e quando a atriz Lucy Liu recebeu a dela não deixou de prestar tributo à mulher que preparou o caminho para os asiáticos vingarem na chamada terra dos sonhos. Pois bem, este é o momento. Está a fazer-se história..dnot@dn.pt