Quando começa o filme Maria, sobre Maria Callas (1923-1977), há uma breve conversa da cantora lírica com o seu mordomo, Ferruccio: ela dá-lhe instruções para mudar a posição do piano que está no salão, avisando-o também de que está a chegar uma equipa de televisão para a entrevistar. Na pose contida de quem adora a senhora que é sua patroa, Ferruccio formula a mais inesperada das perguntas: “Madame, essa equipa de televisão é real?”Que se está a passar? Uma coisa é certa: não estamos perante aquele modelo estereotipado de biografia, contaminado por convenções da mais medíocre televisão, em que fazer o retrato de um(a) artista consiste em ilustrar um destino previamente definido e fechado sobre si mesmo. Que tem Maria a dizer sobre a tal equipa de televisão que está a chegar? Pois bem, ela enuncia uma nova regra da casa: “A partir desta manhã, o que é real e o que não é real é um problema meu.”A entrevista tem lugar na cena seguinte. Terá mesmo? Acontece que o jovem entrevistador se chama Mandrax, precisamente o mesmo nome que vemos escrito no frasco de comprimidos a que Maria recorre logo depois de se levantar... Digamos, para simplificar, que Pablo Larraín, o realizador chileno que acrescenta aqui mais um título excecional à sua notável filmografia, utiliza a personagem de Maria Callas como porta-voz do seu próprio desejo criativo: no interior do filme, o que é real e o que não é real é, afinal, um problema dele.O espectador é livre de “acreditar” ou não nas cenas que se vão sucedendo: a tentativa sofrida de voltar a cantar Puccini na companhia do seu pianista, a festiva deambulação junto à Torre Eiffel, o encontro muito cru, cruel mesmo, com John F. Kennedy... Aliás, não é tanto um problema de crença, à maneira dos filmes que, ingenuamente, se dizem de “reconstituição histórica” - é, isso sim, uma questão de verosimilhança. Num filme tão singular, tão impossível de imitar como é Maria, a verosimilhança não é a de uma biografia convencional, mas sim a que nasce do artifício da ópera: o sonho, paradoxalmente ou não, pode transportar a verdade mais pura e mais impossível de dizer, a não ser pelo canto.Na sua dimensão informativa, o filme de Larraín propõe um claro dispositivo temporal. Tudo se passa em Paris, nos anos finais da vida da cantora: La Callas é, agora, uma mulher solitária, a voz a falhar e a própria memória da ligação com o magnate Aristotle Onassis reduzida a um dos capítulos de uma penosa agonia romântica. Do esplendor ambíguo dos cenários à sedução teatral dos gestos, passando pela tristeza dos olhares, ela pode dizer ao seu médico que, agora, a sua vida lhe surge como uma “representação” encenada para os seus próprios olhos. Que significa isso? “Agora, finalmente, sou eu que controlo o fim.”Jacqueline & DianaA representação de Maria Callas por Angelina Jolie é uma maravilha puramente cinematográfica como há muito tempo não víamos num ecrã. Sem descurar uma metódica atenção à figura e à música (o canto resulta de uma sofisticada combinação digital da voz da atriz com a voz verdadeira da cantora), a sua presença imponderável transcende os limites físicos de cada cenário - ela surge como alguém que já pertence a um mundo onde é aguardada pelo seu próprio fantasma. Dispensando o apelido lendário, pode, assim, reencontrar a fragilidade comovente das cenas com a mãe: deixou de ser a “Callas”, para viver e morrer como “Maria”.. Para lá de filmes como Post Mortem (2010), em que analisou outros fantasmas (da ditadura de Pinochet), com este prodigioso Maria Larraín completa a trilogia iniciada com Jackie (2016) e Spencer (2021), respetivamente sobre Jacqueline Kennedy e Diana, Princesa de Gales. São filmes ao mesmo tempo luminosos e secretos que podem ilustrar as palavras que Oscar Wilde coloca na boca do narrador de um dos seus contos: “As mulheres existem para serem amadas, não para serem compreendidas.”.'Ainda Estou Aqui'. Isto não é uma telenovela