O nome Anatole Litvak (1902-1974) não dirá quase nada à maioria dos espectadores. E mesmo os cinéfilos só chegam lá através de alguns títulos, sobretudo produções de Hollywood, que suscitam aquele comentário coloquial “ah, esse filme é dele?”. Será esta, porventura, a expressão corrente nos próximos dias na Cinemateca, que dedica ao realizador expatriado nascido em Kiev (numa família judia, quando a cidade ainda pertencia ao Império Russo) um ciclo de duas partes, com a primeira a decorrer ao longo do mês de dezembro, fruto de uma colaboração com o festival Il Cinema Ritrovato de Bolonha, que se destina à exibição de obras restauradas. Como convidado especial, estará presente o programador Ehsan Khoshbakht, um iraniano radicado em Londres que já antes apresentara na sala lisboeta outro ciclo à volta da cinematografia do seu país de origem. Ele que o ano passado trouxe ao LEFFEST o seu último e belíssimo documentário, Celluloid Underground, sobre a cinefilia que o formou e o amigo que para ela contribuiu de modo decisivo, ao salvar filmes clássicos da ira dos fundamentalistas no pós-Revolução Iraniana..Dar este contexto serve apenas para se perceber que Khoshbakht, atual diretor de programação do Il Cinema Ritrovato, é alguém entusiasta e sensível à memória das obras clássicas que tendem a ficar perdidas no tempo. Obras como a de Anatole Litvak, que, nesta primeira parte, vem representada em 12 filmes, a maioria produções da indústria do cinema americano, havendo outros títulos rodados em França e um na Alemanha..Logo no arranque, amanhã, pelas 19h, Três Minutos de Vida (Sorry, Wrong Number, 1948) surge como um estupendo exemplar das incursões de Litvak pelo cinema de género, neste caso, o film noir. Presa à cama no seu apartamento de luxo nova-iorquino, uma mulher neurótica interpretada por Barbara Stanwyck (papel que lhe valeu a quarta nomeação ao Óscar) apanha ao telefone, por engano, uma chamada sobre um plano de assassinato com hora marcada, que transformará o seu dia numa sucessão de pistas a envolverem o próprio marido (Burt Lancaster), para quem estava a tentar ligar... Adaptado de uma peça radiofónica de Lucille Fletcher, pela autora ela mesma, este antecedente de Chamada para a Morte, de Hitchcock, é das mais originais construções narrativas que se encontram no ciclo, com flashbacks em cadeia, inclusive uns dentro dos outros, num ritmo alucinantemente complexo, que elabora uma coreografia de vozes, revelações e sombras..É assim, com linhas fortes, que começa o percurso por uma filmografia recheada de estrelas. Senão veja-se, o filme seguinte, À Conquista da Cidade (1940), também amanhã, pelas 21h30, é um drama urbano com James Cagney, e um elenco povoado por nomes como Elia Kazan, Arthur Kennedy e Anthony Quinn, que mostra Nova Iorque pela lente da eterna busca do sucesso, com um homem simples (Cagney) a tornar-se pugilista só para agradar a mulher que ama, movida pela ambição. Já Blues in the Night (1941), no dia 5, 19h30, também com Kazan entre os atores secundários, segue a formação de uma banda apaixonada pelo blues de New Orleans, focando-se no seu pianista triste e no novelo emocional do grupo. Bem diferente de O Génio do Crime (The Amazing Dr. Clitterhouse, 1938), no dia 6, 19h30, onde um notável Edward G. Robinson veste a pele de um médico que se infiltra num gangue para estudar as alterações nervosas produzidas pelo ato criminoso – um drama psicológico refinado, com um toque de comédia negra, que conta com Humphrey Bogart no papel do vilão..Ainda dos filmes realizados em terras americanas, há para ver The Woman I Love (1937), remake do francês A Equipagem (1935) – este também de Litvak e em exibição no ciclo –; Tovarich (1937), uma comédia com Claudette Colbert e Charles Boyer a brincarem aos casais da aristocracia russa fugida após a Revolução de 1917; e Crepúsculo Vermelho (The Journey, 1959), um drama histórico e político protagonizado pela dupla de O Rei e Eu, Deborah Kerr e Yul Brynner. No capítulo francês, Litvak dirigiu futuras damas e galãs como Danielle Darrieux, Jean Gabin e o referido Boyer, sendo aqui a maioria dos filmes primeiras apresentações na Cinemateca..Cineasta que se distingue aos nossos olhos como um hábil artesão visual – atente-se aos devaneios de montagem e uso criativo da sobreposição de imagens –, a sua marca de autor nunca foi fácil de definir. Ehsan Khoshbakht, num texto introdutório, escreve: “A base de produção de Litvak mudou, tal como a pronúncia do seu nome, mediante as suas mudanças de Moscovo para Berlim, Paris, Londres e Hollywood, mas a quintessência do seu cinema permaneceu intacta: a vida como metáfora de uma travessia noturna, em busca da luz do dia.”.Daí que o ciclo se chame “Viagens pela Noite – O Mundo de Anatole Litvak”, o mesmo título da conferência que o programador dará no dia 6, depois de acompanhar as sessões nos dias anteriores..Anatole Litvak.