Para o melhor e, sobretudo, para o pior, o comércio cinematográfico dos nossos dias está minado por “eventos” enraizados em conceitos de marketing que exploram uma ideia pueril de “surpresa”, porventura de “revolução”. Trata-se de uma questão muito típica das ilusões mais ou menos chantagistas fabricadas pelo politicamente correto, ainda que com episódios transversais que pontuam toda a história do cinema. A saber: alguém que se afirmou através de uma forte marca autoral pode cair na armadilha de tentar “repetir” essa mesma marca, de modo a garantir a continuidade do seu reconhecimento... Ou, pura e simplesmente, porque perdeu o fulgor da sua singularidade criativa. Parece que algo desse género está a acontecer com a francesa Julia Ducournau: depois do impacto de Titane (Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2021), aí está o seu frustrante Alpha (também revelado em Cannes, no passado mês de maio).Poderá dizer-se que Titane continha já os germes de muitos equívocos, sobretudo pelo modo como nele ecoavam alguns clichés do nosso tempo que tendem a sacralizar uma “rebeldia” temática que, de uma maneira ou de outra, se apresenta com uma certa caução “feminista”. Em boa verdade, nada disso impedia que Titane fosse uma curiosa experiência cinematográfica, arriscando em linguagens paradoxais - do chamado “body horror” de um certo cinema de terror até aos ritmos visuais dos telediscos -, gerando uma narrativa capaz de desafiar algumas convenções do espetáculo cinematográfico contemporâneo. Sem esquecer, claro, a herança da inquietante depuração de Raw (2016), primeira longa-metragem de Ducournau. . Obviamente, Alpha não é estranho à sensibilidade visual e sonora de Titane, até porque voltamos a estar perante um assombramento que se exprime através da instabilidade do corpo. Assim, esta é a história de Alpha (Mérissa Boros), uma jovem de 13 anos que chega a casa com uma tatuagem num braço. Algo confusa sobre o modo como tudo aconteceu, suscita a imediata inquietação da mãe (Golshifteh Farahani), e tanto mais quanto há sinais de uma estranha doença sanguínea que transforma os corpos em verdadeiras estátuas de mármore...Tal como acontecia em Titane, Ducournau não deixa de criar condições para os riscos de representação dos atores (destaque inevitável para Golshifteh Farahani), mas é francamente pouco. O filme procura tocar todos os pontos capazes de suscitar uma ideia mecânica e determinista de parábola sobre as epidemias do presente, mas esgota-se numa construção narrativa que se vai reduzindo a uma acumulação de momentos “choque” tão repetitivos quanto redundantes. .'Bugonia'. Redescobrindo o prazer da fábula .'Stiller & Meara: Nada Está Perdido'. Como fazer humor em seis minutos