A verdade e a mentira tão próximas
Entre heróis e vilões separa-se uma linha fina, sobretudo nas profundezas das grandes questões morais da sociedade iraniana. O que é um ato nobre? O que é um ato imoral? Sim, o novo filme do realizador de O Vendedor é um enigma sobre a moral, mas é antes de mais um questionamento a cada um dos espetadores sobre as suas crenças de um ideal do bem e do mal. Numa altura em que assistimos a uma guerra que é profundamente infame, um filme como este chega para nos deixar a refletir sobre os lugares da justiça e do bem. Tal como nos outros grandes filmes de Farhadi, Um Herói é um exame moral sem "moralismos".
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Rahim, um pai solteiro, está a cumprir uma pena de prisão em Teerão e tem uma licença de curta duração para sair. É durante esse período que ele e a sua nova namorada tentam pagar a dívida a quem Rahim devia dinheiro. Supostamente, Rahim devolve uma mala valiosa a uma mulher e esse ato de "bondade" é descoberto pelos media. Em seguida, jornais e televisões querem fazer dele um herói e a sociedade exige que seja libertado, mesmo quando o homem a quem deve dinheiro continue ofendido e a querer a sua condenação. Paralelamente, crescem dúvidas quanto à legitimidade do ato de Rahim. Em toda esta narrativa, Farhadi, como sempre, não traz muitas certezas. Por um lado, queremos acreditar numa ideia de gentileza humana de Rahim, por outro, na vida real, sabemos que nada vem por acaso e que o cinismo humano é uma espécie de praga. Uma coisa é garantida, ficamos com o coração na boca ou mesmo asfixiados quando por um lado nos entregamos a um ideal de esperança humana ou, quando por outro, duvidamos do mesmo...
No cinema deste novo mestre iraniano continua a conseguir-se equilibrar razão e sentimento, mas, como sempre, com um distanciamento tão sereno como trágico. São os dilemas da vida e do Irão, sempre com um espírito de observação que ora consegue atingir um tremor filosófico como uma simplicidade acerca da fraqueza humana. Com um ritmo que nunca deixa cair as causas dramáticas do dilema e um timing de clímax notável, só possível com atores entregues a um jogo de naturalismo estonteante. Atores que nos põem próximos deles, como o protagonista, Amir Jadidi.
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Claro está que ao fim de uma série de filmes a olhar para as complexidades e injustiças deste Irão intolerante é possível perder-se um pouco o efeito novidade. Quem viu Uma Separação e O Passado talvez sinta alguma repetição, embora talvez seja imperioso lembrar que quem filma com esta integridade tem sempre algo de novo para mostrar. Se é uma fórmula de olhar? Que o seja, fascina e continua a fazer-nos duvidar das nossas certezas.
Um Herói pode então não ser uma das suas obras-primas mas é mais uma prova de que Farhadi está sempre atento às pequenas grandes convulsões da sua sociedade, neste caso mostrando o quão fácil é cair nas boas graças e desgraças das redes sociais. Neste caso, é um filme sobre as muitas verdades e mentiras de um ato. Chama-se a isso ética em cinema e é por isso que cada sequência está encenada com um respeito gigante aos detalhes e aos tempos da coreografia dos corpos. Fora de campo e em campo, tudo pensado ao milímetro para transmitir um sufoco do real.

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