O novo filme de Noah Baumbach, Jay Kelly (Netflix), apresenta-nos um George Clooney “igual” a si mesmo, assumindo a personagem de um célebre ator de Hollywood que atravessa uma peculiar crise de identidade, angustiada, ma non troppo. Na companhia do seu agente, Ron (Adam Sandler), Jay prepara-se para viajar até Itália onde, na Toscana, será alvo de uma homenagem. A sugestão de alguns ecos autobiográficos parece reforçar-se quando, precisamente na sessão em que é homenageado, vemos uma montagem de imagens da carreira de Jay Kelly que, afinal, pertencem a filmes protagonizados pelo próprio Clooney - Três Reis (David O. Russell, 1999), Syriana (Stephen Gaghan, 2005), Nas Nuvens (Jason Reitman, 2009), etc.Enfim, não simplifiquemos. Aliás, para evitar confusões, Clooney tem referido que a personagem de Jay Kelly não foi concebida como um reflexo, ainda que ambíguo, da sua trajetória pessoal. É verdade que Baumbach escreveu o argumento (com a colaboração de Emily Mortimer, que interpreta a cabeleireira pessoal de Jay) a pensar em Clooney, mas não é menos verdade que, ao lê-lo, a sua primeira reação foi de clara demarcação. Numa entrevista à rádio pública dos EUA (NPR), lembrou mesmo aquilo que disse a Baumbach: “Este tipo é meio pateta!”Para lá da famaNa mesma entrevista, Clooney sublinha o valor pedagógico da história que Baumbach lhe propôs: “Para mim, foi uma boa lição compreender como o sucesso pouco tem a ver com a própria pessoa.” Dito de outro modo: “Quando as coisas correm bem, isso não quer dizer que sejamos tão brilhantes como nos dizem - mas eles dizem. E não seremos tão horríveis como nos dizem quando as coisas não correm bem - mas eles dizem.” Integrando a herança crítica de alguns clássicos da produção americana - lembremos a obra-prima The Bad and Beautiful/ Cativos do Mal (1952), de Vincente Minnelli, com Kirk Douglas e Lana Turner -, Jay Kelly possui o didatismo, e também a ironia, de uma visão capaz de relativizar as ostentações correntes da fama e do sucesso.Autor de títulos como A Lula e a Baleia (2005) e Frances Ha (2012), este protagonizado por sua mulher, Greta Gerwig (também presente no novo filme, no papel da mulher de Ron), Baumbach continua a procurar os ecos nostálgicos de uma herança melodramática que, obviamente não por acaso, agora se cruza com as pessoas e os lugares da indústria cinematográfica.Dois vetores do argumento são especialmente significativos da sua desencantada visão, sempre filtrada por um inabalável amor pelo cinema. Em primeiro lugar, o confronto de Jay com Timothy (Billy Crudup), companheiro da juventude, também ator, cuja amizade permanece contaminada por uma rivalidade difícil de superar. Depois, o diálogo difícil, para não dizer impossível, de Jay com as duas filhas, Jessica e Daisy (Riley Keough e Grace Edwards, ambas magníficas), numa clivagem de gerações que redobra a primordial solidão do ator.Aliás, as dinâmicas dramáticas desta coleção de personagens (os filmes de Baumbach expõem, quase sempre, os laços instáveis de uma pequena tribo mais ou menos familiar) são também reflexo de uma genuína dedicação às nuances do trabalho dos atores. Não esqueçamos, por isso, que no elenco deparamos ainda com Jim Broadbent, Laura Dern, Patrick Wilson, Alba Rohrwacher e o bem reaparecido Stacy Keach (no papel quase burlesco, mas não caricatural, do pai de Jay).Hollywood ou Netflix?Para lá dos paralelismos já referidos, é claro que Jay Kelly não surge como revisão crítica (nem autocrítica) do percurso artístico de George Clooney. Em qualquer caso, fará também sentido lembrar que, aos 64 anos, ele vive um processo de reinvenção que, curiosamente, passou pela sua estreia na Broadway. Assim, este ano, Clooney já produziu e protagonizou em palco a adaptação de um dos filmes que interpretou e dirigiu, o admirável Boa Noite, e Boa Sorte (2005), sobre a defesa da liberdade de expressão por Edward R. Murrow, no começo da década de 1950, nos ecrãs da CBS.Enfim, o lançamento de Jay Kelly acontece num contexto de muitas tensões no interior do cinema americano, motivadas pela possível aquisição de um dos grandes estúdios clássicos, Warner Bros., pela Netflix. Mesmo considerando que Jay Kelly é um objeto anterior a tais atribulações, não é possível omitir a bizarra ironia: celebrando a herança artística e emocional de Hollywood, Jay Kelly é uma produção com chancela... Netflix!