Tendo em conta que a produção portuguesa teve especial destaque na edição de 2024 do Festival de Cannes — com Grand Tour a valer o prémio de realização a Miguel Gomes —, uma pergunta emerge: será que O Riso e a Faca, de Pedro Pinho, poderá estar na linha da frente para obter um prémio na secção Un Certain Regard? Uma coisa é certa: 2025 vai ficar como mais um ano de uma presença particularmente forte, sobretudo diversificada, do cinema português na Côte d’Azur, ainda com outra longa-metragem — Entroncamento, de Pedro Cabeleira, na programação ACID (produção independente) — e vários títulos a concorrer para a Palma de Ouro das curtas-metragens. Sem esquecer os casos de Magalhães, do filipino Lav Diaz, e Once Upon a Time in Gaza, dos palestinianos Arab e Tarzan Nasser (respectivamente nas ante-estreias e Un Certain Regard), obras a cuja produção estão ligadas empresas portuguesas. Ser ou não ser moderno O palmarés oficial, resultante da decisão de um júri presidido por Juliette Binoche, será anunciado no sábado. Cumprida a primeira metade do festival, o menos que se pode dizer é que, mesmo não declarada, existe uma clara clivagem entre os filmes que, melhor ou pior, tentam exibir alguns sinais experimentais e aqueles que, não desdenhando temas e sensibilidades do presente, não desistem das muitas variações possíveis a partir das matrizes clássicas — o fascinante Two Prosecutors, do ucraniano Sergei Loznitsa, será a “bandeira” dessa obstinada opção. Entre os primeiros, talvez mais “vanguardistas”, estão dois títulos que, para abreviar, me parecem totalmente desastrosos e, por fim, cinematograficamente fúteis. Sirât, do francês Oliver Laxe, é mesmo um exemplo esclarecedor de um certo cinema da moda que, embora usando pontos de partida sugestivos — neste caso, um homem que, nas paisagens desérticas de Marrocos, sobretudo em “raves” de barulho ensurdecedor, procura a filha desaparecida —, mais não faz do que colecionar episódios desgarrados que, entre o dramático e o cómico, se limitam a celebrar um tom pitoresco sem verdadeiro critério narrativo. Quanto a Eddington, a nova parábola americana de Ari Aster com Joaquin Phoenix (com quem já tinha rodado o inenarrável Beau Tem Medo), o menos que se pode dizer é que não basta cultivar uma respeitável memória cinéfila — incluindo uma citação completamente deslocada de Young Mr. Lincoln (1939), de John Ford — para fazer qualquer coisa que se pareça com um objeto minimamente consistente. Desta vez, Phoenix interpreta um xerife de uma cidadezinha do Novo México a viver as atribulações da pandemia de covid, ao mesmo tempo que se vai agudizando um confronto pouco pacífico com o mayor (Pedro Pascal). Compreendemos que se trata de uma tentativa de revisitar, com alguma nostalgia, a herança do “western”, mas convenhamos que é preciso algo mais do que uma banal coleção de caricaturas... Tanto em Sirât como em Eddington, estamos perante um cinema moderno (entenda-se: de tiques modernistas) que vive da exploração de pormenores “temáticos” mais ou menos sugestivos, mas com um entendimento apenas instrumental da linguagem cinematográfica. São filmes, afinal, que se interessam muito pouco pelo espectador, parecendo não desejar mais do que algum consenso mediático. Ser e não ser clássico A produção francesa está fortemente representada, quer por títulos gerados em França, quer por obras que resultam de complexos arranjos de produção (no filme de Loznitsa, por exemplo, colaboram empresas de seis países europeus, incluindo a França). Também neste domínio, dois exemplos podem ser esclarecedores: Dossier 137, de Dominik Moll, e Nouvelle Vague, de Richard Linklater. .Dossier 137 poderá definir-se como um herdeiro legítimo de um género policial francês a cuja genealogia estão ligados atores como Jean Gabin, Lino Ventura ou Yves Montand. Com uma diferença — a figura central do lado da polícia é uma mulher — que é tanto mais interessante quanto se apresenta de forma simples e direta, sem recorrer às muletas de um feminismo tosco, irremediavelmente moralista. Descobrimos, assim, Stéphanie, investigadora da IGPN (Inspection Général de la Policie Nationale), ou seja, a “polícia das polícias” do Estado francês. Seguimo-la durante a investigação (baseada em factos verídicos, diz a legenda inicial) de uma agressão perpetrada por um polícia contra um jovem durante as manifestações dos “coletes amarelos”. Mais do que um mero enigma (policial, precisamente), trata-se de expor uma teia de relações transversais, incluindo o discreto tratamento da vida privada de Stéphanie, em particular através da personagem do seu filho. No papel central, a brilhante Léa Drucker envolve-nos nessa convulsão dramática em que as próprias fronteiras da privacidade ameaçam diluir-se. Enfim, celebremos Nouvelle Vague — sobre a rodagem de À Bout de Souffle/O Acossado (1960), de Jean-Luc Godard —, desde já um dos acontecimentos fulcrais desta 78ª edição de Cannes. Quer isto dizer que o americano Richard Linklater, nosso conhecido através de filmes tão variados como Antes do Amanhecer (1995), A Scanner Darkly (2006) ou Boyhood (2014), realizou um filme... francês? É verdade: não apenas uma produção francesa, mas também uma evocação sensível da gestação da primeira longa-metragem de Godard, nascida de um reinventado amor pela herança dos clássicos (não confundir com o filme Nouvelle Vague, com Alain Delon, realizado pelo próprio Godard em 1990). Imagens e sons .Como representar, então, não apenas Godard, mas também todos aqueles que, direta ou indiretamente, em 1959, estiveram envolvidos nessa “vaga” que era realmente nova, a ponto de ter transfigurado as lógicas do cinema europeu e mundial? Procurou-se alguma semelhança física nos intérpretes, com inevitável destaque para o próprio Godard e o par Jean Seberg/Jean-Paul Belmondo, central em À Bout de Souffle — são eles, respectivamente, Guillaume Marbeck, Zoey Deutch e Aubry Dullin. Seja como for, o mais importante está nas ambiências da época, do funcionamento mais ou menos tribal da redação dos Cahiers du Cinéma (onde os jovens da Nova Vaga se iniciaram como críticos de cinema) até aos delirantes improvisos da rodagem. Linklater consegue algo de raro quando se evoca a produção de um filme. A saber: não apenas inventariar os tiques e as anedotas, mas mesmo em momentos da mais desconcertante ligeireza (por exemplo, quando Godard diz a Seberg para correr e dar um beijo a Belmondo) dar a ver o cinema como trabalho. A palavra é essencial: trabalho. O cinema nasce de um trabalho específico capaz de gerar uma fascinante cumplicidade entre imagens e sons — mesmo quando, como era o caso, não havia registo de som direto. .Dois filmes das margens .Babelsberg: um nome forte na paisagem de Cannes.Babelsberg: um nome forte na paisagem de Cannes