Um livro não se esgota nas atribulações que conduzem à sua primeira edição. Longe disso. Mas há livros cuja história de tais atribulações é tanto mais significativa e apaixonante quanto parece duplicar o fulgor da própria escrita. Assim acontece com A Arte da Alegria, de Goliarda Sapienza (1924-1996), obra-prima da moderna literatura italiana que volta a estar disponível no mercado português — com tradução de Simonetta Neto e chancela das Publicações Dom Quixote, trata-se da reimpressão da edição portuguesa de 2009. Entretanto, há uma recente mini-série que adapta o livro (título internacional: The Art of Joy), disponível na plataforma SkyShowtime. Se podemos resumir uma vida tão excepcional como a de Sapienza, talvez faça sentido dizer que há nela um vento de revolta que se vai enredando com a vontade de não deixar a sua própria história entregue aos outros. O romance coloca-nos perante uma “simulação” de autobiografia em que as experiências de Modesta, a personagem central, ecoam de forma ambígua a odisseia pessoal e política da autora. A educação e a visão do mundo de Sapienza foram muito marcadas pela sua mãe, jornalista e ativista feminista que, a certa altura, chegou a trabalhar com o filósofo marxista Antonio Gramsci. Num universo em que a militância anti-fascista se cruzava com a sensibilidade anarquista da época, Sapienza cresceu num ambiente de convívio com figuras emblemáticas da vida cultural de Itália, acabando por lançar-se numa carreira de actriz, especialmente importante no teatro, mas também com diversas experiências na produção cinematográfica, incluindo um pequeno papel no filme Senso (1954), de Luchino Visconti; cruzou-se com o argumentista Cesare Zavattini e cineastas como Pier Paolo Pasolini ou Francesco Maselli, com este tendo mantido uma relação de cerca de duas décadas. Protagonista de uma existência de muitos sobressaltos emocionais, Sapienza começou a escrever depois da agitada separação de Maselli e duas tentativas de suicídio: Carta Aberta, uma memória publicada em 1967, constitui um primeiro testemunho de tudo isso (disponível entre nós numa edição da Antígona, publicada em 2023). Quando se lança na escrita de A Arte da Alegria, tudo se passa como se a personagem de Modesta, nascida na Sicília no dia 1 de janeiro de 1900, fosse um espelho contraditório, de uma só vez trágico e poético, das memórias da própria autora (Sapienza era natural de Catania, a segunda maior cidade siciliana). As primeiras palavras do romance refletem, desde logo, a pulsão intimista de uma escrita em que o uso da primeira pessoa, ainda que por vezes interrompido, significa que Sapienza, mesmo não tendo vivido as peripécias que narra, conhece-as de modo visceral, a partir do interior. No parágrafo de abertura de A Arte da Alegria, Modesta apresenta-se mesmo como uma narradora enredada nos nós temporais da sua memória: “Aqui estou eu com quatro, cinco anos, num espaço lamacento a arrastar um pedaço de madeira imenso. Não há árvores nem casas à volta, apenas o suor pelo esforço de arrastar este corpo duro e o ardor agudo das palmas das mãos feridas pela madeira. Afundo-me na lama até aos tornozelos, mas tenho de puxar, não sei porquê, mas tenho de o fazer. Deixemos esta minha primeira lembrança assim como está: não me apetece fazer suposições ou inventar. Quero contar-vos aquilo que se passou sem mudar nada.” A mentira das palavras .A saga existencial de Modesta será desde muito cedo marcada por dramáticos episódios sexuais que, explicitamente ou não, se vão cruzando com as convulsões de uma Itália ferida pelos dois conflitos mundiais. A narração de tudo isso desenvolve-se através de uma exigência realista na evocação, sempre assombrada pela angústia da própria escrita. Na abertura da quarta e última parte deste romance de cinco centenas de páginas, Sapienza relembra, implacável: “A mentira encerrada nas palavras é um poço sem fundo.” A Arte da Alegria nasceu depois de um período de nove anos de trabalho, concluído em 1976. Recusado por vários editores como um livro agressivo e inútil, a sua primeira parte teria uma discreta difusão em 1994. Na verdade, só na sequência do impacto das traduções francesa e alemã seria editado na íntegra em Itália, em 2008, doze anos depois da morte da autora. Não haveria maneira mais cristalina de ilustrar esse poder ancestral com que a escrita se liberta, e nos liberta, da prisão do tempo.