Sandra Faleiro está a disputar a categoria de melhor atriz em Veneza com Meryl Streep, Juliette Binoche, Laura Dern, Penélope Cruz e Scarlett Johansson. A personagem da atriz no filme português A Herdade é Leonor, mulher de João (Albano Jerónimo), uma mulher submissa, que se vai revelando nas ambiguidades que caracterizam todas as personagens do filme..Acompanhe aqui a cerimónia em direto.."O realizador, Tiago Guedes, sempre teve a preocupação que ela [a Leonor] não fosse só um cliché da mulher submissa, então tivemos toda uma procura de lhe dar profundidade, pontos de vista e ambiguidade", diz a atriz sobre a personagem. O filme sensação que tem sido muito elogiado em Veneza e tem estreia marcada para 19 de setembro, nas salas nacionais..Na entrevista ao site Delas.pt, Sandra Faleiro fala da condição feminina, a da sua personagem e das mulheres no país e, claro, no cinema - começando por Veneza cujo júri deste ano é presidido por Lucrecia Martel - e no teatro, onde tem uma longa carreira que além da representação, inclui também a encenação..O que significa para si, enquanto coprotagonista deste filme, A Herdade, estar na seleção oficial do Festival de Veneza? Para já, foi uma grande surpresa, não estava nada à espera que isso acontecesse. É o festival de cinema mais antigo e é um grande orgulho. Eu gosto muito do filme, acho que é belíssimo. Portanto, vou estar em Veneza com muito orgulho. Foi um trabalho muito coeso, toda a gente deu tudo durante as filmagens e eu acho que isso se nota no filme. Para mim, é quase como se estivesse a viver um filme dentro do filme [risos]. É um bocadinho surreal..Como é que definiria a Leonor? Eu acho que a Leonor passa muito por aí. Ela é uma personagem que existe! Mas tanto é a minha assim como a dos outros. As personagens deste filme estão muito bem construídas e são profundamente humanas. São todas bastante ambíguas, como somos todos na vida..Esta história fala de uma família latifundiária e atravessa a ditadura e a revolução do 25 de Abril, que faz com que a condição das mulheres também se altere. Como é que a sua personagem evolui com estas mudanças todas, enquanto indivíduo mas também enquanto tipificação da mulher dessa época e dessa esfera social? No filme, houve toda a fase dos anos 70, que é o início do casamento. De qualquer forma, as mulheres, naquela época, foram educadas para sofrer, calar e aguentar, e serem submissas. Não punham as coisas em causa. A Leonor era filha do general [Lopo Teixeira], também um ditador, ainda por cima! Vem com esta tradição toda familiar e de educação católica bastante conservadora. Mas com o sofrimento ela foi mudando, e com a revolução, apesar de ela não ser uma personagem política, pressente-se a política nela. A Leonor não tem propriamente um discurso político, tem um bocadinho, mas nada de muito explorado. Eu acho que o filme é muito sobre a família, a história de uma família que é atravessada pela revolução. Ainda assim, a Leonor emancipa-se, no fim, ela corta o fio, e há uma redenção nela. Agora, em relação à situação feminina, as coisas mudaram mas continuam a existir grandes desigualdades: os homens continuam a ganhar mais, são eles que ocupam os cargos de gestão, as mulheres trabalham muito mais porque, além do emprego, vão para casa e ainda têm de tratar dos filhos e das tarefas domésticas, que muitas vezes não são divididas. E ainda existe muito machismo e muita misoginia. Vivemos numa democracia, mas há ainda muita coisa que tem de ser falada e resolvida e temos de continuar a lutar pelos nossos direitos e pela igualdade, obviamente..Como disse, isto é um filme que é, sobretudo, uma história de família e muitas vezes as mudanças legais e sociais acabam por demorar mais tempo a chegar, justamente, ao seio e vivência familiares. Sim, exatamente. Ainda por cima, no caso do filme, estamos a falar de uma família que vive numa herdade. Ou seja, também é uma espécie de ilha. E as personagens todas são ilhas dentro da ilha. É como se todos estivessem envoltos numa névoa. Uma das coisas mais interessantes no filme e que também se passa muito na realidade é o que não se diz, é o que se pressente, o que se vai acumulando e que depois rebenta de alguma maneira..Além deste festival, A Herdade foi também selecionada para outros prestigiados festivais de cinema, como o festival de Toronto, está nomeado para os prémios Goya e até há críticos que dizem que é a primeira vez que temos um forte candidato à shortlist dos Óscares. Concorda com a conclusão de muitos, de que há um renovado interesse no cinema português?.As coisas estão a começar a começar, porque existem muitos realizadores novos e agora o Variações está a ter imenso público. Espero que ajude as pessoas a voltarem a ir aos cinemas ver cinema português. E este filme, A Herdade, não é só um filme autoral, tem um lado universal que o torna também comercial, está ali no meio entre o comercial e o autoral. Não é um filme de "elite" e isso é muito interessante. E é cinema! Para mim é um clássico, é filmado de uma maneira que me faz lembrar aqueles grandes clássicos do cinema. Temos realizadores muito bons e é preciso aproveitar esta onda de criatividade e alimentá-la e apoiá-la, que é o grande problema que nós temos, tanto no cinema, como no teatro... Por exemplo, o Tiago Guedes que é um realizador extraordinário esteve 10 anos sem filmar. É absurdo! Espero que depois disto ele vá ter mais oportunidades e lhe criem condições..O júri de Veneza, este ano, é presidido por Lucrecia Martel. Mas, segundo a própria realizadora, há poucos filmes dirigidos por mulheres nesta edição. Ela chega a lançar a possibilidade de haver quotas de representação feminina. Concorda? Acha que este poderia ser um caminho? Poderia ser, sim. Mas esta questão das quotas também é sempre complicada, eu acho que é sempre mais difícil para as mulheres conseguirem alguma coisa. Não sei se mudará indo pelas quotas..A Sandra, que tem experiência na encenação, também sente de forma parecida em relação ao teatro essa diferença de representação de género?.Eu tenho muitas colegas que são encenadoras e que estão a trabalhar, mulheres que estão aí a fazer imensa coisa. O que eu acho é que há mesmo falta de apoios..Mas essa falta de apoios é igual independentemente do género, ou as mulheres por estarem, talvez, há menos tempo neste campo acabam por ter mais dificuldade em consegui-los? Pois, se calhar é por aí: os homens estão há mais tempo, não é? Exatamente. Essa é uma boa questão. Os homens estão há mais tempo, é quase uma coisa ancestral. Nós começámos há pouco tempo, de facto, a encenar, a dirigir, a realizar. É verdade. É uma tradição toda masculina, para trás, que tem de se rebater. Acho que também passa por aí, com certeza. Mas mesmo voltando à questão da realização e da encenação, no geral, o que eu sinto é que há, de facto, a questão sempre incontornável da política cultural. Eu faço uma encenação de dois em dois anos e, se calhar, gostava muito mais de estar a encenar todos os anos duas peças e é muito difícil porque é impossível estar a sobreviver, no dia-a-dia, com isso. Não há apoios para isso. E os teatros estão cheios. Portanto, deviam apoiar mais e impulsionar mais..Disse que gostou muito do filme, mas o que é que gostou mais? Foi o processo. Foi daqueles processos especiais que são transformadores e quando isso acontece é incrível, faz com que a nossa vida profissional faça outra vez sentido. É como se fosse uma lufada de ar fresco!.Quanto tempo é que durou esse processo? Eu fui fazer casting um mês antes de começarem as filmagens - em junho, julho de 2018 - e depois as filmagens duraram dois meses, sendo que cada dia era uma descoberta porque houve um trabalho de fundo sobre o guião e à medida que se ia filmando, o guião ia-se transformando. A minha personagem, a Leonor, estava [no guião] mais superficial, era só uma figura espectral no argumento, mas o Tiago Guedes sempre teve a preocupação que ela não fosse só um cliché da mulher submissa e então tivemos ali toda uma procura de lhe dar profundidade, pontos de vista e ambiguidade..Veja mais em www.delas.pt