Texto: Cristina Fontenele*Era madrugada de uma quarta-feira quando uma forte trovoada seguida de flashes invadiu o quarto. Assustada, levantei da cama e procurei o recanto mais escondido e longe do espelho (quem é supersticioso entende). O que poderia ser roteiro de filme era cena da vida real, de quem tem pavor de relâmpago e cresceu numa terra com o sol a pino. O medo não foi à toa. Segundo as notícias, nesta data, Portugal registrou mais de 23 mil descargas elétricas em 12 horas. O outono, de fato, tinha chegado.Há quase três meses as vitrines sinalizavam a mudança de estação. Resisti o quanto pude como imigrante tropical: com sandálias e vestido florido de alça. O guarda-roupa estava em transição, vez ou outra apenas complementava com uma jaqueta. Até que, semana passada, gelou, mãos e pés confirmaram com frieza que era a hora de enrolar-se. Luvas, meias quentes e cachecol protegendo a garganta serão os acessórios por alguns meses. É tempo de forrar a cama com mantas, de abrir a mala das roupas de frio e se surpreender com as próprias vestes. “Olá, querido, como foi a hibernação?”, podemos saudar o xadrez, os tons cinzentos, enquanto dobramos os estampados. É momento também para um exercício de autopercepção, deparar-se com os trajes e questionar se estes ainda nos refletem, o que podemos reduzir, se damos mais uma chance ou é melhor ir para doação. Os humores passam por ajustes, os espíritos ficam mais reservados e feições sisudas lotam o metro. Há espirros e tosses nos transportes, o nariz escorre sem aviso (lencinho a postos sempre), logo pela manhã cheiro de álcool em alguns hálitos, e é o início da temporada do agasalha-despe-recobre no entra e sai dos ambientes com temperaturas distintas. O estômago pede alimentos calorosos, a dizer que por dentro precisa de reconforto. Curioso, porque na minha cidade de 30 graus o quente da comida não interferia no organismo. No máximo, provocava sono após uma refeição mais robusta. Vivendo em Portugal, percebo uma ligação mais imediata com o ponto de calor do prato. No verão europeu, até sou capaz de recusar um café, o que jamais ocorreria no Brasil. Talvez porque no Nordeste a estação varia entre o mormaço e a quentura, e o corpo funcione segundo a lógica dessa régua.Quando a pessoa se locomove a pé ou de transportes públicos é preciso ainda carregar o peso das decisões na bolsa. Escolher um casaco mais composto ou arriscar passar frio? O vento está favorável ou não para usar saia? Guarda-chuva pequeno ou grande? Capa? E, mesmo com a consulta diária ao aplicativo do tempo, podemos ser surpreendidos por aquela chuva não prevista. O lamento se estende por horas - “Deveria ter saído com outro casaco”.Adentrar o outono é atravessar a instabilidade do tempo e suas particularidades. A ventania que arrancou os telhados da estação Santa Apolônia esta semana envergou o guarda-chuva da minha amiga. “Virou e partiu as hastes em mil pedacinhos”, contou quando perguntei como ela lidou com o dia de tempestade Claúdia. Por precaução, comprei um guarda-chuva maior. Porém, no primeiro uso quase arrebentou com a força do vento. Isso é o mínimo diante das quase 2 mil ocorrências no país devido ao mau tempo. Há três dias que a sirene é um som constante.Cada estação pede uma resiliência diferente e outros jeitos de lidar com a rotina. Enquanto as botas já saíram para caminhar por Lisboa e as roupas vão compondo camadas, meus amigos cearenses enviam vídeos humorísticos com pessoas saindo à rua segurando um balde com água a molhar a cabeça ao longo do trajeto. Respondo com outro vídeo mostrando as variadas formas de amarrar lenços e echarpes. Brincamos que seria bom intercambiar um pouquinho os graus de cada lado. Sabemos os efeitos que os extremos podem ter.*Cristina Fontenele é escritora brasileira, com especialização em Escrita e Criação. Autora de "Um Lugar para Si - reflexões sobre lugar, memória e pertencimento”, além de jornalista e publicitária. Escreve crônicas há quinze anos e, como típica cearense, ama uma rede e cuscuz com café bem quentinho..O DN Brasil é uma seção do Diário de Notícias dedicada à comunidade brasileira que vive ou pretende viver em Portugal. Os textos são escritos em português do Brasil..Crônica. Missão: encontrar casa para morar.Opinião. Como pertencer em um mundo globalizado?