Uma luta corpo a corpo contra a ausência de futuro

A nova criação de Cláudia Dias é a primeira de sete peças em sete anos. Um combate em doze assaltos no FITEI, no Teatro Rivoli.
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Muhamed Ali, que nasceu Cassius Clay, travou "o combate mais belo de todos os tempos" no ano da "revolução mais bela do mundo". Foi em 1974, a 20 de outubro em Kinshasa, contra o invencível Georges Foreman, jovem Campeão do Mundo de Pesos Pesados, título que já fora de Ali e este perdera, impedido de combater por causa de outra guerra, a que o opunha à que os Estados Unidos declararam ao Vietnam. O K.O que lhe selou a vitória ficou na História, mas muito do que sucedeu antes e depois é matéria da criação coreográfica que subiu pela primeira vez a um palco português nessa noite de 3 de junho de 2016, quando o campeão se despediu de vez.

"Sabias que antes do combate Ali perguntou à sua equipa - Se vamos ganhar porque estão todos tão tristes?" ou "Sabias que Ali dançava antes do combate e durante o combate também?" são perguntas lançadas como socos em Segunda-feira: Atenção à Direita, criação que Claúdia Dias estreou no Alkantara Festival e agora apresenta no FITEI, ambos ringues para o primeiro assalto de uma longa luta, a proposta de uma artista que, à precaridade e falta de futuro, opõe um desafio: sete peças em sete anos. "Este projeto começa a formar-se em 2011, num contexto com uma gravidade que hoje, com a nova correlação de forças na Assembleia da República, já não está tão presente. Nessa altura não havia futuro, nós artistas só tínhamos o "direito" de conceber futuro a prazo, as nossas vidas eram desenhadas ano a ano. O Sete Anos Sete Peças é um gesto de reclamar o futuro. É afirmar que eu posso construir futuro. É um gesto político e esta relação que estabeleço com o tempo - ocupando, no fundo, uma década - também é. Tal como é um gesto político uma estrutura como o Alkantara comprometer-se a produzir sete espectáculos de um artista".

Cada uma das sete peças é também um convite que a coreógrafa estende a um artista, "uma proposta de encontro com o outro para edificarmos um objeto em comum, com arestas, com os conflitos naturais de duas pessoas diferentes que estão juntas para construir algo".

12 assaltos e 200 questões

Para este embate inicial Claúdia Dias escolheu o autor e encenador espanhol Pablo Lareo Fidalgo e essa escolha determinou não apenas o conteúdo mas a forma do espectáculo. "Foi uma verdadeira luta. O Pablo e eu estamos muitas vezes nos antípodas em relação a maneiras de fazer, de pensar - ele acredita no que sai à primeira e que a repetição mata, eu penso que a repetição apura e desconfio sempre das primeiras impressões - e esse conflito acaba por estar plasmado na própria estrutura da peça".

Segunda-Feira: Atenção à Direita é um combate em 12 assaltos, uma viagem que começa no boxe tradicional, passa pelo muay-thai e acaba numa espécie de street fight com dois adversários de respeito no ringue: a própria Cláudia e Jaime Neves, mestre da disciplina de combate tailandesa, que entrou no projeto como treinador da coreógrafa, há cerca de um ano, e é agora protagonista. Fidalgo assume o papel do combate textual, levantando as questões. "Achas que a tua forma de amar foi definida pelas tuas ideias políticas?" ou "Sabias que imaginar é um trabalho imprescindível para ganhar a guerra?" são algumas das mais de 200 perguntas que alimentam o embate como se alimenta o fogo, por necessidade e beleza e sentido deste encontro aguerrido. "Construímos o texto juntos, com questões que vão da micro à macro política. Fizemo-lo também para ativar a ideia de voltar a questionar, contra a ideia vigente de que todas as perguntas foram feitas e as respostas dadas".

Não é um manifesto mas cabe num projeto que o é. Sete Anos Sete Peças (www.seteanossetepecas.com) tem dentro, além das criações coreográficas, três projetos satélites: Sete Anos Sete Livros, com as peças e desenhos de António Jorge Gonçalves; Sete Anos Sete Escolas, apresentação das peças e oficinas de criação com alunos de escolas de Almada, e um documentário de Bruno Canas, com toda a liberdade para "injetar ficção na proposta documental".

Quatro destaques para oito dias

O Festival Internacional de Expressão Ibérica 2016, com casa no Porto e direção de Gonçalo Amorim, propõe na sua semana final, entre masterclasses, concertos e debates, espectáculos a não perder.

A Noite Canta, de Tiago Correia
Dia 11, Teatro Campo Alegre, Porto

Seres desolados, uma casa que é refúgio e prisão, desejos em colisão, uma criança recém-nascida: eis a pólvora que Jon Fosse utiliza em A Noite Canta os Seus Cantos, ao qual Tiago Correia vai buscar as palavras para encenar "uma tragédia contemporânea íntima e delicada, que explora as fraquezas de um casal a adiar o fim da relação". Ana Moreira, António Parra e Pedro Almendra dão corpo às personagens do dramaturgo norueguês que "escreve com amor e empatia sobre os que são deixados para trás".

Nunca Mates o Mandarim, Teatro Experimental do Porto (TEP)
de 15 a 17 de junho, Teatro Nacional de S.João, Porto

"Existe na longínqua China um riquíssimo mandarim, que deixou testamento a favor de quem o matasse, e que pode ser morto de uma maneira muito fácil: premindo um pequeno botão de uma campainha em Paris. (...) Será que carregaríamos no botão?". Eça de Queiroz debruçou-se sobre a questão - conhecida como "o paradoxo de Rousseau" -, com sarcasmo e colorido, em O Mandarim, e Gonçalo Amorim convoca-o, numa adaptação de Rui Pina Coelho, para "endereçar à sociedade contemporânea um direto comentário". Na mouche.

El Señor Galíndez, Teatro Amplio
15 e 16 de junho, Teatro Carlos Alberto, Porto

"Os grandes torturadores não foram homens selvagens, apenas homens medíocres, burocratas de escritório. Os organismos fascistas necessitam de burocratas de escritório para esta organização". A partir desta afirmação lapidar, a companhia chilena Teatro Amplio cruza a obra que dá título à peça, do argentino Eduardo Pavlovsky, com a investigação do jornalista Javier Rebolledo e o seu livro La Danza de los Cuervos, para analisar "a estrutura institucional da ditadura" e "a naturalização institucional da violência" no seu país, mas não só.

Los Milionários, Teatro La María
19 de junho, Cine-Teatro Constantino Nery, Matosinhos

O FITEI encerra com uma comédia negra, escrita e encenada pelo chileno Alexis Moreno, que convida à reflexão sobre as "idiossincrasias e relações de poder num país classista e racista". Em cena, um escritório de advogados corruptos que decide representar a causa mapuche - "o povo indígena mais numeroso do Chile que luta pela recuperação do seu território ancestral"- defendendo um dos seus, acusado de homicídio de agricultores. "O objetivo é libertá-lo. Não porque estejam convencidos da sua inocência, mas pelo que podem ganhar com isso".

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