O mundo dividiu-se ontem em dois quando foi anunciado o Prémio Nobel da Literatura de 2016. De um lado ficaram os que concordam que Bob Dylan é um autor que, segundo a Academia Sueca, criou "novas expressões poéticas na grande tradição da canção americana". Do outro, os que acham que os versos na Literatura são de poetas e não de letristas, ou que o Nobel é mesmo para escritores e para quem não o é há o Ig Nobel..Queira-se ou não, Bob Dylan foi a grande surpresa desta estação dos Nobel. Não se pode fugir a esta realidade, nem a Academia Sueca deixou de ter os seus 15 minutos de fama conforme previa um contemporâneo do novo Nobel. Conseguiu-se surpreender e pôr de lado um percurso habitual de eleição dos laureados, o que honra as grandes obras literárias ao invés das grandes canções. Ninguém pode dizer que Dylan não as fez, mesmo que a sua escolha tenha partido a louça como se fosse o vencedor inesperado de um festival da Eurovisão. Bob Dylan não é um "obscuro" Patrick Modiano ou Alice Munro, pelo contrário, o mundo inteiro conhece-o e não há quem não o identifique com um senhor que tem muitas rugas e uma voz esganiçada, que anda com uma guitarra a tiracolo e uma harmónica nos beiços..Que escreve as suas canções, mesmo que não se lhe conheça uma fotografia num momento de reclusão dedicado à escrita da Literatura, mas conhecem-se outras fotografias mais recentes, aquelas em que foi tocar à Casa Branca, momento em que surpreendeu Barack Obama - aquele que não apoia Donald Trump - porque não quis tirar uma fotografia com ele e a primeira-dama. O presidente, no entanto, deu-lhe uma comenda e afirmou: "Não há um gigante maior na história da música americana!".O mesmo acha a academia Sueca, designadamente a polémica secretária-permanente, Sara Danius, que definiu Bob Dylan como um criador que "ao final de 54 anos continua a reinventar-se" e que "é um grande poeta na tradição da oralidade da língua inglesa". Igual opinião é a de Salman Rushdie, que tweetou imediatamente: "De Orfeu a Faiz, as canções e a poesia têm estado intimamente ligadas. Dylan é o herdeiro brilhante da tradição trovadoresca. Grande escolha.".Opinião que também existe em Portugal, pois Miguel Esteves Cardoso também gritou logo: "Dylan é inegavelmente um grande escritor. A Academia Sueca está a usar o Prémio Nobel para restaurar a literatura. Tomara que regresse à literatura oral. As histórias que não são escritas também podem ser grandes e imortais." Aliás, Sara Danius já tinha dado o mote para estas comparações ao considerar que a canção The times they are a"changing talvez tivesse a dimensão dos textos de Homero e de Safo. Registe-se a frase que foi dita pela secretária-permanente perante a surpresa que adivinhava que esta escolha de Dylan poderia provocar : "Se olharmos para trás, descobre-se Homero e Safo. Eles escreveram textos poéticos que eram para serem ouvidos, para serem representados muitas vezes em conjunto com outros instrumentos, e o mesmo acontece com Bob Dylan. Ainda lemos Homero e Safo e apreciamos. A mesma coisa acontece com Bob Dylan - ele pode ser lido e deve sê-lo.".Esta é a declaração perfeita para acrescentar mais um minuto aos 15 a que a Academia já tinha direito, mas as opiniões não são todas como a de Rushdie, como é o caso do escritor Irvine Welsh: "[É um prémio] marcado pela nostalgia, arrancado das próstatas rançosas de hippies senis e sem sentido"..Ouvir discos em vez de ler.O próprio, Bob Dylan, a meio da tarde ainda não se tinha pronunciado sobre o Prémio Nobel. Tinha um espetáculo em Las Vegas e estava a dormir. Ninguém o incomodou..A maioria dos agora obrigados a serem colegas de Bon Dylan, os escritores, não foram muito entusiastas da escolha. No entanto, diga-se, muitos ficaram satisfeitos porque não saíram vencidos do maior confronto literário que existe sobre a Terra, aquele que deixa um autor feliz e 99 infelizes a cada anúncio..Ontem, ainda não tinha havido desabafos por parte dos 18 membros do júri sobre a unanimidade em torno da escolha de Dylan, personalidades respeitáveis que costumam passar o primeiro semestre de cada ano a ler obras dos prováveis candidatos ao Nobel da Literatura e que desta vez terão tido a vida facilitada, pois bastava-lhes ouvir discos. Muitos deles ainda terão tido o prazer de escutar em vinil... E quem sabe se alguns não terão posto a hipótese de alternativa, como Leonard Cohen, outro importante fazedor de "novas expressões poéticas" na língua inglesa..Será literatura o que Dylan faz? Esse será o debate após o choque para meio mundo, mesmo que desta vez seja a única em que não há notícias sobre a ausência de traduções e livros publicados nos vários países. Todos têm um disco do Nobel, mesmo que a própria Sara Danius, uma fã assumida do cantor, tenha confessado que na juventude preferia David Bowie. Será que de confissão em confissão achará que em Philip Roth e Don DeLillo também existe a reinvenção da língua inglesa?.A aposta menos consistente.Se ontem de manhã, Bob Dylan irrompeu até ao nono lugar das casas de apostas britânicas, sendo que na véspera ainda era considerado uma paródia o seu nome. Tanto assim que no seu país houve quem escrevesse um artigo em que o título era Parem de dizer que Bob Dylan vai ser Prémio Nobel..Mas foi o destino, pois aquele que nasceu como Robert Allen Zimmerman, a 24 de maio de 1941, em Duluth, Minnesota, surpreendeu todos. Já o fizera com as suas canções depois de aos 14 anos ter comprado a primeira guitarra para atuar nos espetáculos de rock "n" roll da escola. Tirou ao poeta Dylan Thomas o Dylan e inspirou-se na música de Woody Guthrie para se guindar à música folk. Em 1961, muda-se para Nova Iorque e vai treinar a carreira em estabelecimentos de Greenwich Village. Um ano depois lança o primeiro disco, repetindo o sucesso enquanto questionava a Guerra do Vietname e outros casos da época.."Um escândalo"... Um tiro no pé".Se a discografia de Bob Dylan é abundante em Portugal, o grande trabalho "literário" das letras escritas pelo poeta existe em dois livros da Relógio D"Água e um de Crónicas, pela Ulisseia (Babel), intitulado Os Afluentes da Memória..E o que pensam os da Literatura sobre a escolha da Academia? Questionado sobre o vencedor desta edição, Zeferino Coelho, o único editor português que teve um Nobel entre os autores que publicou - José Saramago -, a reação foi de "alguma estranheza". Disse ao DN: "O Nobel trata de Literatura, o que não é o caso. Conheço mal o cantor e não aprecio o que faz. Teve a sua influência mas não é um Philip Roth " Não se fica por aqui: "É um tiro no pé da Academia, que atrasou o anúncio por causa desta embrulhada." Desde já avisa: "Para o ano vamos fazer uma campanha pelo poeta Chico Buarque, isto porque Zeca Afonso já morreu.".A mesma estupefação existe em Lídia Jorge. "Acho triste e apenas confirma que a Academia Sueca está a viver o tempo do espetáculo em vez do da literatura. Corre atrás da moda e não do trabalho verdadeiramente literário", acusa. Aponta para autores como Milan Kundera, "que fez um trabalho de ligação ente o Ocidente e o Leste", ou Adonis, que "com uma poesia extraordinária fala do Oriente e do Ocidente". Lídia Jorge não duvida que a "literatura é tratada superficialmente pela Academia, que despreza as pessoas que dedicaram toda a sua vida à literatura. É triste.".Para Richard Zimler, a atribuição do Nobel a Bob Dylan confirma que a dúvida sobre se "alguém acredita que na Suécia os especialista tenham capacidade de avaliar a literatura escrita em japonês, bengali, francês ou húngaro?" Acrescenta: "O Prémio é dado apenas por razão geográfica, filiação política... Dario Fo é melhor quer Tennessee Williams ou Ionesco? Modiano supera Philip Roth?" E conclui: "A qualidade nunca será a preocupação do Prémio Nobel.".Longe destas posições esteve o presidente Rebelo de Sousa. Que assume exprimiu a sua surpresa pela atribuição do Nobel da Literatura a Bob Dylan numa breve nota publicada no site da Presidência, associando-se à "homenagem da Academia Sueca, inesperada mas significativa", enquanto evoca as memórias da "sua juventude" e refere que é "sinal claro de que os tempos estão a mudar"..Os mais atentos às regras do Prémio Nobel foram ontem consultar o testamento do seu patrono no que respeita à escolha do escritor. Disse Alfred Nobel sobre o prémio monetário: "Será distribuído anualmente àqueles que, no ano precedente, conferiram um grande benefício à humanidade". No caso específico da Literatura, refere: "[cabe] à pessoa que tenha produzido no campo literário o mais excecional trabalho que aponte para uma direção ideal." O certo é que a 10 de dezembro, Bob Dylan estará a receber das mãos do rei da Suécia um Diploma Nobel - igual ao de José Saramago -, uma Medalha Nobel - igual à de Gabriel García Márquez -, e um "cheque" - como o dado a Saul Bellow. Coisas físicas que fixam para a eternidade a obra dos vencedores do Prémio instituído pelo inventor da dinamite.