A destituição por "incapacidade moral" do popular Martín Vizcarra gerou uma onda de protestos que culminou em violência e mortes nas ruas. Pressionado, Manuel Merino, que assumira a presidência há uma semana, acabou por se demitir cinco dias depois. No Parlamento, uma primeira tentativa de eleger um sucessor falhou, deixando um vazio temporário de poder, mas à segunda foi de vez: o escolhido é Francisco Sagasti. No entanto, o Tribunal Constitucional até poderá considerar ilegal a destituição inicial de Vizcarra..A crise política começou na segunda-feira 9 de novembro. O Parlamento peruano aprovou por 105 votos a favor (só precisava de 87) a destituição de Vizcarra, por suspeita de que recebeu centenas de milhares de dólares em subornos quando era governador de uma pequena província, Moquegua. O presidente de 57 anos negou as acusações, que ainda estão a ser investigadas..Independente, que fazia da luta contra a corrupção a sua bandeira e era mais popular do que o Congresso (metade dos deputados são suspeitos de lavagem de dinheiro ou até homicídio), Vizcarra foi também criticado pela resposta à pandemia de covid-19 (já há mais de 35 mil mortos no país)..Por não ter vice-presidente - de facto, Vizcarra era o número dois de Pedro Pablo Kuczynski e assumiu o poder quando este se demitiu, em março de 2018 -, a Constituição do Peru estabelece que a presidência deve ficar nas mãos do líder do Parlamento..Manuel Merino, de 59 anos, jurou como presidente na terça-feira, 10 de novembro, com apelos à calma (os protestos já tinham começado) e garantias de que, como previsto, os peruanos iriam às urnas a 11 de abril para eleger o próximo presidente, cuja tomada de posse está prevista para finais de julho de 2021..Mas já havia quem falasse de um "golpe disfarçado" e apelasse aos peruanos para que continuassem nas ruas. As manifestações foram crescendo - há quem diga que foram as maiores desde a saída de Alberto Fujimori do poder, em 2000 - e a polícia reagiu com violência. Na quinta-feira 12 de novembro, pelo menos 14 pessoas ficaram feridas, duas delas com gravidade atingidas por tiros da polícia..No sábado 14 de novembro, milhares de pessoas voltaram a manifestar-se contra Merino, a quem apelidaram de "impostor". Pelo menos dois jovens manifestantes morreram e mais de uma centena ficaram feridos pelos tiros da polícia em Lima. Além disso, organizações de direitos humanos dizem que há mais uma dezena de "desaparecidos"..A pressão sobre o presidente aumentou, e não veio só das ruas. Mais de metade dos seus ministros demitiram-se, o presidente da Câmara de Lima, Jorge Muñoz, que pertence ao seu partido, exigiu que saísse, e o próprio Parlamento exortou-o a abandonar o cargo..Quando anunciou a sua demissão, no passado domingo, 15 de novembro, Merino expressou condolências às famílias dos jovens que morreram, mas avisou que por detrás dos protestos estavam também "grupos interessados em provocar o caos". As ruas festejaram a sua saída e o procurador-geral já abriu uma investigação preliminar às mortes contra Merino..Vizcarra congratulou-se com a demissão: "Um ditador saiu do palácio. Merino deu um passo ao lado. Estava a romper a nossa democracia", disse aos jornalistas..Cabe ao Parlamento designar um sucessor de Merino, ou melhor, eleger uma nova direção, sendo certo que o líder será automaticamente presidente interino. Ainda no domingo, os deputados procuraram nomear Rocio Silva Santisteban ,de esquerda, que parecia ser um nome consensual: era uma lista única..Contudo, a antiga ativista dos direitos humanos só conseguiu 42 votos a favor (precisa de 60), com 52 votos contra e 25 abstenções. A falta de apoio foi uma surpresa, levando os deputados a adiar nova votação para esta segunda-feira, quando um novo nome foi sugerido para presidir ao Congresso e, consequentemente, passar a presidente: Francisco Sagasti..Sagasti, do Partido Morado, foi aprovado com 97 votos a favor, 26 contra e nenhuma abstenção. Os manifestantes, que pressionaram Merino a sair, tinham exigido que o novo presidente fosse alguém que não tivesse votado a favor da destituição de Vizcarra, o que se confirma com a escolha de Sagasti (o Partido Morado tinha-se oposto à saída do ex-presidente)..Sagasti, de 76 anos, formado em Engenharia e neto de um dos heróis da pátria (coronel Francisco R. Sagasti y Saldaña, que lutou em várias batalhas da Guerra do Pacífico), só está no Congresso desde março, tendo um longo percurso político enquanto assessor em vários departamentos e ministérios, tendo também passado pelo Banco Mundial e pelas Nações Unidas..Entretanto, o Tribunal Constitucional anunciou que adiantava para esta segunda-feira a sessão em que irá discutir a legalidade da destituição de Vizcarra. Em causa está a definição de "deixar vago o cargo por incapacidade moral" e se pode ser considerado que foi isso que aconteceu - o pedido ao tribunal foi feito por Vizcarra em relação a um primeiro processo de destituição, ainda em setembro, que conseguiu ultrapassar..Os juízes devem decidir se continuam e votam sem ouvir os representantes do Governo e do Ministério da Justiça. Uma decisão final neste caso poderá revogar a destituição do presidente e voltar a colocar Vizcarra no palácio presidencial..A crise política no Peru dura há uma semana, mas a sua génese vem de antes. E nem é preciso recuar a 2000 e à demissão de Alberto Fujimori, por fax, durante uma visita ao Japão (tinha dupla nacionalidade). O ex-presidente acabaria por regressar e ser condenado a 25 anos de prisão por corrupção e crimes contra a humanidade, por ter ordenado o assassínio de 25 pessoas por um esquadrão da morte durante a guerra contra a guerrilha do Sendero Luminoso..Basta recuar até 2017, quando na presidência estava Pedro Pablo Kuczynski, o homem que os peruanos elegeram em 2016, derrotando a filha mais velha de Fujimori, Keiko. Nesse ano, o economista admitiu que, enquanto ministro da Economia e das Finanças uma década mais cedo, tinha recebido dinheiro como consultor da Odebrecht, a empresa de construção brasileira envolta numa série de escândalos de corrupção..Kuczynski sobreviveu a um primeiro processo de destituição no Parlamento, em dezembro de 2017, apenas para três dias depois assinar um perdão para Fujimori, que já tinha cumprido 12 anos de sentença. Foi de imediato acusado de negociar o perdão em troca da sua continuação no poder com o apoio do outro filho de Fujimori, Kenji, e de outros nove deputados do seu partido, Força Popular..Mas Kuczynki acabaria mesmo por se demitir em março de 2018, dias antes da votação de um segundo processo de destituição, novamente por ligações à Odebrecht. O presidente tentou comprar os votos de deputados opositores e, quando surgiram vídeos que o provavam, acabou por se antecipar à destituição pelo Parlamento e apresentar a demissão. Foi detido em abril de 2019, estando a cumprir prisão domiciliária..Kuczynski é o quarto ex-presidente desde Fujimori envolto no escândalo de corrupção da Odebrecht. Alejandro Toledo (2001-2006) foi acusado em 2017 de lavagem de dinheiro e de receber dinheiro da construtora em troca de favorecer a empresa. Detido nos EUA em 2019, foi entretanto libertado sob caução por causa da pandemia da covid-19..O seu sucessor, Alan García, que já tinha sido presidente de 1985 a 1990 e regressou de 2006 a 2011, suicidou-se em abril de 2019, quando a polícia se preparava para o deter por suspeitas de também ter recebido subornos da Odebrecht. Já Ollanta Humala (2011-2016) também acabaria por se entregar às autoridades em julho de 2017, acusado de lavagem de dinheiro e de associação criminosa, tendo passado vários meses preso e aguardando entretanto a investigação em liberdade, com ordem de se apresentar periodicamente às autoridades.