Viúva de Ihor pede a jornalistas que a deixem em paz: "O foco deve ser no processo, não no que estou a sentir"
"Não tenho nada de novo para dizer, já partilhei toda a informação que tenho. Agradeço o trabalho dos jornalistas que fizeram esse processo andar para a frente, mas estou a sentir um exagero de atenção sobre mim, muita pressão. Estou a sentir-me exausta, preciso de paz. Não quero que mais ninguém venha de Portugal para me entrevistar. Por favor."
A voz de Oksana Homeniuk, viúva do cidadão ucraniano morto a 12 de março sob custódia do SEF é como sempre segura, contida - exceto à despedida, quando ouve o desejo de bom Natal e a voz lhe falha na retribuição: na verdade, é talvez uma insensibilidade assumir que se pode desejar bom Natal a alguém nestas circunstâncias.
A tradução é feita por Anna Hutsul, que tem servido de intérprete entre Oksana e o seu advogado, José Gaspar Schwalbach, e que contactou o DN esta quarta-feira, preocupada com o estado de aflição da sua compatriota. Esta ligara-lhe a chorar, exasperada por estar a ser alvo de insistência por parte de uma equipa de reportagem da RTP: segundo Oksana, tinham-lhe telefonado mais de uma dezena de vezes a pedir uma entrevista e, apesar de ela ter recusado sempre, não paravam de ligar.
"Estou cansada psicologicamente, quero proteger os meus filhos. Estava um silêncio muito grande e agora este alvoroço todo. Não quero falar mais", diz Oksana, que conta que a equipa da RTP não lhe pediu a entrevista antes de sair de Portugal: "Contactaram-me na terça-feira da parte da tarde quando já cá estavam, recusei, e não pararam de ligar. Disseram que queriam fazer entrevista televisiva sobre situação económica da região e da família, como consigo viver e tomar conta dos filhos sem o meu marido. Disse que não, voltaram a ligar quatro, cinco vezes, e esta quarta-feira ligaram outra vez de manhã, a dizer que seria positivo para mim dar a entrevista, por causa do processo."
De facto, no jornal da uma da tarde desta quinta-feira, a repórter da RTP Cândida Pinto assumiu que Oksana tivera muitas dúvidas em dar a entrevista, que será difundida esta noite, mas acabara por ceder.
A viúva de Ihor Homeniuk assente: "Durante o dia todo persistiram com telefonemas. Achei que nunca iam desistir se eu não aceitasse. Então pedi-lhes para não virem à aldeia onde vivo, porque é muito pequena e toda a gente me conhece e há o risco de os meus filhos se aperceberem, e combinei noutro sítio. Felizmente aceitaram não vir à aldeia. Fui ter com eles e pedi que me deixem em paz."
Ainda antes de se encontrar com a RTP, recebeu um telefonema de outra jornalista que lhe disse que se desse aquela entrevista teria que dar aos outros todos. "Não sei dizer quem era mas era de Portugal. Fiquei assustada."
Todo este assédio, nota, contrasta com a atitude dos jornalistas ucranianos: "Também pediram entrevistas, mas recusei e não insistiram."
Uma insistência tanto mais incompreensível quando as perguntas feitas pela RTP, comenta, "foram muito semelhantes às feitas em anteriores entrevistas - se Ihor tinha epilepsia, por exemplo, o que tinha ido fazer a Portugal.
Perguntas que o DN, que publicou a primeira entrevista com Oksana, a 13 de abril, naturalmente fez. Nessa altura, um mês após a morte de Ihor, a viúva contou que a 13 de março lhe tinham anunciado o óbito como devendo-se a um ataque epilético - para seu grande espanto, pois não lhe conhecia essa doença.
"O cônsul quando me ligou a 13 de março disse que o Ihor tinha tido um ataque epilético e sido hospitalizado, e que quando voltou do hospital antes da entrada no avião teve novo ataque epilético e morreu. Faríamos 15 anos de casamento em novembro e nunca soube nada de epilepsia." Confrontada com a informação de que no hospital de Santa Maria, onde Ihor foi levado a 11 de março, está registado que ele disse que tinha tido um episódio epilético anterior, em França, Oksana foi taxativa: "Ele nunca esteve em França sequer."
Ihor, garante, nunca fora sequer à Europa ocidental: "Só trabalhou na Federação Russa entre 2012 e 2014, até começar a guerra com a Ucrânia, e depois na Polónia [a aldeia onde vivia com Oksana é muito perto da fronteira com aquele país]."
A Portugal, afiança, o marido, que tinha terminado uma empreitada na Ucrânia um mês antes, tinha vindo "saber se era possível trabalhar, ver quais as condições. Só queria estar duas ou três semanas para saber como era."
A última vez que ele lhe ligou estava para embarcar no aeroporto de Liv, ainda na Ucrânia. É alguém, que não quer identificar, que lhe liga de Lisboa para a avisar de que ele tinha sido "barrado" pelo SEF e ia ser colocado num voo de volta. "É uma pessoa da nossa confiança. Telefonou-me no dia 11 a dizer que o Ihor fora parado na fronteira e ia ser deportado. Disse-me que ele não podia ligar-me porque lhe tiraram o telemóvel mas que estava bem e que ia em breve regressar à Ucrânia."
Não é claro se esta pessoa estava no aeroporto ou se Ihor fez para ela o único telefonema permitido no local para onde o levaram: todas as pessoas que o DN tem entrevistado e que estiveram no Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT) do aeroporto de Lisboa, onde são detidos os estrangeiros a quem é recusada a entrada em território nacional e aguardam repatriamento, asseguram que uma vez que lhes eram retirados os telemóveis só tinham direito a um telefonema de dois minutos efetuado do telefone do local. Certo é que Ihor nunca ligou dali para Oksana.
Esta nega que o marido tivesse vindo já com um contrato de trabalho em vista, como foi dito ao DN por uma ucraniana, Maria, e como o próprio processo dele no SEF certifica: na entrevista/interrogatório de que foi alvo, Ihor teria dito que vinha trabalhar como tratorista numa empresa onde já estava o cunhado, e que teria contrato pronto para assinar, auferindo 1200 euros mensais. Oksana não nega a existência de um cunhado (assume que existe um familiar dos dois em Portugal, que vive cá há três anos, mas não quer dizer exatamente o grau de parentesco) porém garante que não era o caso: o marido vinha mesmo a Portugal só para ver como era.
Outra informação dada por Oksana que é contraditória com o que consta no processo de Ihor no SEF é a quantidade de dinheiro que ele traria consigo: o SEF diz 350 euros, a mulher 600. "Ele saiu da Ucrânia com 600 euros no bolso. E o familiar que temos em Portugal poderia emprestar ou mesmo dar-lhe mais se fosse preciso."
A diferença é relevante: a quantia de dinheiro que alguém que diz vir a Portugal em turismo - sem visto de trabalho, Ihor entrou em Portugal como turista (ao contrário do que afirmou o ministro da Administração Interna no parlamento, na audição de 8 de abril, Ihor não tinha visto de turista; os ucranianos não precisam dele para estadas até 90 dias na UE) - traz consigo é um dos indicadores, para a polícia de fronteira, da veracidade ou não dessa pretensão.
Há mais informações constantes no processo que mereceram a perplexidade de Oksana.
Uma, atribuída ao hospital de Santa Maria, e é de que Ihor teria "hábitos alcoólicos crónicos". "Não percebo isso. Fico muito surpreendida. Ele não bebia muito. Era cristão praticante e quando fez a viagem estávamos na quaresma, não ia pôr-se a beber." Outra é a imputação, pelo SEF, de um comportamento tão agressivo ao marido que teria implicado algemarem-no. Esta imputação está quer na comunicação do SEF ao Ministério Público sobre a sua morte quer no relatório interno feito por um dos dois inspetores que o encontraram com dificuldade em respirar na tarde de 12 de março e chamaram o INEM. "Ele nunca foi agressivo, nunca o vi comportar-se nas várias situações como agressivo. Mas se isso é verdade não há câmaras que tenham registado esse comportamento?"
De facto não há registo, pelas câmaras de videovigilância, do alegado comportamento agressivo de Ihor - a única situação em que as câmaras captaram algo compatível com isso é ao fim da noite de 11 de março, quando Ihor está no pátio a fumar e um inspetor do SEF o algema e o leva ao chão: não se percebe no entanto nas imagens que o cidadão ucraniano tenha sido agressivo para o polícia, que mais tarde, no seu testemunho à PJ, diz que não foi de facto o caso.
O mesmo garante uma testemunha ouvida pelo DN e que estava no EECIT quando Ihor ali esteve.
Esta testemunha, uma cidadã brasileira a quem o DN chamou Márcia (não quer para já ser identificada), diz nunca ter visto Ihor a ser agressivo fisicamente com os seguranças da empresa privada Prestibel (com a qual o SEF tem um contrato para "tomar conta" do espaço) ou com os inspetores. Alega que ele não se conformava com estar ali preso, porém, e estaria sempre a tentar fugir.
A mesma testemunha, com a qual a Inspeção da Administração Interna quer falar (o ministro Eduardo Cabrita ordenou a abertura de um inquérito devido a estas declarações) garante que Ihor foi agredido e não foi o único: "Não foi só o ucraniano que apanhou ali. Muita gente teve problemas. Vi surras que muitos apanharam. Levam para aquela salinha que nós chamávamos dos remédios e batem. Várias pessoas foram postas naquela sala e saíam roxas e rebentadas, a coxear. Algumas saíam de cadeira de rodas. Vi vários factos acontecer do estilo do ucraniano. Quando vinham os inspetores e levavam para a salinha já sabíamos que era para a surra. Também fazem no banheiro, porque não tem câmaras."
É na sequência do episódio no pátio que Ihor é colocado na sala denominada "dos Médicos do Mundo", a qual no diagrama do Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária do SEF do aeroporto de Lisboa está designada como "sala de isolamento" - apesar de, como várias testemunhas garantem, a porta não fechar.
As últimas imagens de Ihor vivo foram captadas perto da uma da manhã de 12 de março: nessa altura, estava de casaco e boné e com ar de boa saúde. É visto a ser empurrado por um dos seguranças para dentro da sala - e não mais dali sairá, apesar de serem muitas as pessoas, entre seguranças e inspetores do SEF e equipas da Cruz Vermelha, que ali se deslocarão ao longo dessa noite e do dia 12.
Como se sabe, a sua morte acabaria por ser certificada nesse local às 18.40 desse dia por um médico do INEM que não o conseguiu reanimar - e que aparentemente não se terá dado conta de sinais de violência no cadáver, apesar de uma enfermeira da Cruz Vermelha que esteve pouco antes com Ihor (e que é quem chama o INEM) afirmar à Polícia Judiciária que eram visíveis, no corpo do cidadão ucraniano, "diversos hematomas na cabeça e braços" e que este estava de T-shirt escura e cuecas (portanto, com as calças em baixo), com as mãos imobilizadas atrás das costas e exalava um "cheiro nauseabundo".
Nessa mesma entrevista publicada no DN a 13 de abril Oksana contou ter recebido a 29 de março, pelo então cônsul da Ucrânia em Lisboa, Volodymyr Kamarchuk, a notícia de que afinal a morte do marido se teria devido a violência. Um choque terrível, no mesmo dia em que recebeu da Servilusa uma foto do cadáver, que entretanto - dois dias antes - fora cremado.
"Uma senhora ucraniana que trabalha na Servilusa e com quem eu tinha tratado de tudo mandou a foto a dizer que era para reconhecer o corpo". Este reconhecimento ocorreu, estranhamente, após a cremação: "Quando perguntei ao cônsul da Ucrânia em Portugal se era possível ir aí para fazer o reconhecimento ele disse que era impossível por causa da pandemia." Ninguém, garante esta professora de 37 anos, nem o familiar que ela e Ihor têm em Portugal, foi autorizado a ver o cadáver. Também ninguém da embaixada o viu, confirmou ao DN o cônsul, Volodymyr Kamarchuk.
Na foto enviada pela Servilusa, o corpo está dentro de um caixão, envolto num saco branco. Mãos enluvadas de azul expõem-lhe o rosto, de olhos e boca abertos e extensas manchas escuras na pele que parecem sangue pisado.
Uma imagem tão cruel como a notícia que nesse mesmo dia Oksana recebe do cônsul, alertado por uma notícia da TVI: as autoridades portuguesas suspeitam de que a morte do marido se deveu à violência perpetrada por três inspetores da polícia de fronteiras que no dia seguinte, segunda-feira 30, seriam detidos e presentes a juiz, que lhes impôs prisão domiciliária (na qual se escontram até hoje).
Na entrevista de 13 de abril como em todas as que deu até agora, Oksana confessa não ter tido coragem de contar aos filhos as verdadeiras circunstâncias da morte do pai: "Ainda não lhes disse a verdade, que ele morreu por ter sido agredido. Eles ainda creem que foi doença. Ela [a filha, de 14 anos] viu umas coisas no Facebook, porque os jornais daqui falaram do assunto, e veio perguntar-me o que se passava. Disse-lhe que era invenção dos jornalistas, para não os magoar mais. Já é tão difícil para eles assim. Nem querem acreditar que nunca mais vão poder dizer a palavra pai."
Do mesmo modo, a sua nova impressão de Portugal era já expressa nessa entrevista: "Achava que era um dos países do espaço europeu, civilizado, onde os direitos das pessoas estão em primeiro lugar. Nunca imaginei que algo assim poderia acontecer aí."
Oito meses depois da primeira entrevista do DN, a voz de Oksana mantém o mesmo registo de calma resiliência ao assegurar que não tem nada de novo a dizer. "Também me fizeram [a RTP] perguntas mais íntimas: como era a relação com o marido, se ele tinha muitos amigos."
Suspira. "Os jornalistas devem mudar o seu foco para o processo judicial, para o Estado, não para o que estou a sentir e a fazer." E o tom endurece: "Podem por exemplo direcionar a atenção para aqueles três indivíduos que estão em prisão domiciliária - ninguém fala disso, ninguém fala deles, de como estão em casa durante todo este tempo - porquê?"
Os três inspetores do SEF acusados do homicídio qualificado de Ihor Homeniuk - Duarte Laja, Luís Silva e Bruno Sousa -, dois deles também acusados de posse de arma proibida (o bastão extensível que ambos tinham em sua posse quando detidos a 30 de março, que Luís Silva empunhava à entrada da sala onde se encontrava Ihor e que é compatível com marcas verificadas no cadáver), começam a ser julgados a 20 de janeiro. Até agora não fizeram quaisquer declarações sobre o ocorrido às autoridades.