Carlos Cardoso não consegue disfarçar o nervosismo com o assunto: o Vitória e a possível descida de divisão na secretaria, depois de garantida a manutenção em campo. Ele brilhou nos relvados pelos sadinos ao lado do lendário Jacinto João, antes de salvar a equipa de descer de divisão por "seis vezes" como treinador. E por isso é com a voz algo embargada e as palavras enroladas que o ex-sadino aborda "o assassínio de um histórico do futebol português". O pior é que pode ser "um crime" com castigo e sem culpados..Depois de garantir a manutenção em campo, com um triunfo sobre o Belenenses SAD, na 34.ª e última jornada da I Liga, o clube fundado em 1910 foi impedido de se inscrever para a próxima época, depois de a Comissão de Auditoria da Liga Portugal ter reprovado o processo de licenciamento. Em causa estão dívidas a jogadores, funcionários e terceiros..O emblema setubalense, presidido por Paulo Gomes, eleito em janeiro, já recorreu da decisão para o Conselho de Justiça da Federação e aguarda por uma decisão, mas na cidade do choco frito teme-se pelo fim do clube como o conhecem. E o antigo capitão é um deles. "Se o Vitória for para o Campeonato de Portugal pode acabar. Eu acredito que ainda seja possível reverter a situação. O clube recorreu e vamos aguardar. Já houve outros anos em que também estivemos com a corda na garganta e conseguimos, com a ajuda dos sócios e das pessoas da cidade, reerguer-nos. O Vitória Futebol Clube é um histórico de Portugal e é a maior referência da cidade e da região", confessou ao DN Carlos Cardoso, agora com 75 anos, 35 deles passados no Bonfim..O antigo capitão jogou no Bonfim de 1960 a 1970 e chegou a salvar o clube de descer de divisão por seis vezes: "Quando o clube estava a abanar e não havia dinheiro para ir buscar outro treinador, apelavam ao Carlos Cardoso e eu nunca disse que não. Houve uma vez que não consegui e descemos. Foi em 2003, depois de irmos ganhar a Alvalade na última jornada (4-3). Ficou para a história a descida de um histórico que foi jogar a Alvalade, venceu e desceu de divisão.".Agora, só ele sabe "a tristeza que lhe vai na alma" com toda esta situação. "Noto preocupação e desalento das pessoas quando saio à rua. Somos vitorianos e estamos habituados a sofrer, mas já é tempo de reerguer o clube de forma estruturada e sem dar passos maiores do que a perna", disse o ex-capitão sadino, vencedor de duas Taças de Portugal..A velha glória vitoriana defende que as leis são para cumprir e o clube devia "honrar com os seus compromissos" - ele próprio teve de reclamar uma dívida de cerca de 250 mil euros em tribunal em 2011 -, mas "as leis do futebol deviam servir para salvar a história do futebol e não deixar morrer clubes históricos"..Este é já o terceiro ano em que "alguém" quer ficar com o lugar do Vit. Setúbal. Agora é o Portimonense, no ano passado foi o Chaves e há três anos o União da Madeira. Será que à terceira é de vez? "Eu nem quero pensar nisso, mas é preciso fazer alguma coisa para não andarmos sempre com esta morte lenta", atirou o antigo treinador, lembrando que, apesar de os últimos anos serem de sofrimento, o clube já deu muitas alegrias aos adeptos. "Tirando os três grandes, não há clube como o Vitória. Um clube que conquistou três Taças de Portugal em dez finais, uma Taça da Liga, foi quase campeão em 1972 com Pedroto, conseguiu três terceiros lugares, tem mais de 70 jogos nas competições europeias e 77 participações no principal campeonato. Se fosse pelo currículo, o Vitória estava safo...".Apesar da crise desportiva e financeira, o clube ainda tem adeptos fiéis. Na terça-feira, cerca de duas mil pessoas manifestaram-se na Praça de Bocage, no centro da cidade de Setúbal, para exigir a readmissão do clube na I Liga portuguesa. A mobilização não surpreendeu o antigo treinador. "As gentes da cidade de Setúbal e da região também devem muito ao clube. Há uma relação umbilical entre quem nasce cá e o clube. Foi com a ajuda dos vitorianos e setubalenses que se construiu o Estádio do Bonfim. Na altura, o clube espalhou potes de barro pelas casas comerciais para as pessoas contribuírem. Mas, a partir da década de 90, a indústria da região sofreu um abanão e isso refletiu-se nos apoios ao clube e ajudou à crise financeira. Os presidentes passaram a gastar mais do que tinham e agora é isto", desabafou o ex-jogador..24 milhões de dívida. Só ao Estado são 5, 4 milhões.O clube sadino não conseguiu apresentar prova de "inexistência de dívidas a sociedades desportivas", a "inexistência de dívidas a jogadores, treinadores e funcionários", assim como "a regularidade da situação contributiva perante a Autoridade Tributária", segundo se pode ler no comunicado da Liga. E por isso foi excluído. Uma situação que se arrasta desde 2015. O clube tem vivido à sombra de Planos Especiais de Revitalização (PER), um mecanismo de proteção contra credores e de renegociação de dívidas para entidades perto da insolvência. O último foi aprovado em junho e reflete dívidas no valor de 24 milhões de euros..Segundo o documento a que o DN teve acesso, só a dívida ao Estado português é de 5,4 milhões de euros (3,4 à Autoridade Tributária e 1,8 à Segurança Social). Dívida que os 150 sadinos se comprometem a pagar em 150 prestações. A dívida a fornecedores e a outros credores chega quase ao milhão de euros e os financiamentos obtidos superam os 17,6 milhões de euros (3,8 no Banco Comercial Português e 13,7 na Parvalorem, a entidade pública criada para gerir os ativos tóxicos do antigo BPN)..Sem receitas extra ou património para rentabilizar, o clube aceitou ceder verbas relativas a futuras vendas de ativos - 15% se for formado no Bonfim e 10% se não for formado localmente - para pagar aos credores. Entre as dezenas de credores está o Centro Hospitalar de Setúbal, com quase 23 mil euros de prestação de serviços, e a EDP, com 25 mil euros a receber..A SAD vitoriana prevê ainda arrecadar 378 mil euros com a venda de jogadores (no ano passado, o jogador mais caro foi Cadiz, vendido por 60 mil euros). A venda de ações da SAD também está prevista para saldar dívidas, desde que previamente autorizada pelo executor..Com 11 500 sócios, a direção do Vitória compromete-se a chegar aos 15 mil e arrecadar entre 650 e 750 mil euros em quotização por época, bem como rentabilizar o Bingo em meio milhão de euros até 2022. Irrisória é a receita de publicidade prevista no plano: 565 mil euros. Quanto à venda de lugares e de camarotes, pode render quase meio milhão nas próximas duas épocas e se a equipa se mantiver na I Liga..As modalidades e a formação terão de sobreviver com 1, 1 milhões de euros nas próximas duas épocas, fruto de patrocínios e verbas pagas pelos praticantes. É com base no PER aprovado pelos tribunais que os sadinos esperam reverter a decisão da Liga de os excluir das competições profissionais..Além do Vitória de Setúbal, também o despromovido Desp. Aves foi excluído e rebaixado ao terceiro escalão. O clube de Vila das Aves decidiu não recorrer da decisão: "Não valia a pena." A Liga de clubes convidou o Portimonense, 17.º classificado e despromovido, a manter-se na I Liga e o Cova da Piedade e o Casa Pia a manterem-se na II Liga, depois de terem sido despromovidos administrativamente, com o cancelamento do segundo escalão, devido à covid-19.