Michelson David jogava à bola todas as semanas nos campos de terra batida da sua ilha, mergulhava nas águas mornas do Atlântico, dançava noite fora os ritmos africanos... Parece que foi ontem mas já passaram oito anos desde que está paraplégico, agarrado a uma cadeira de rodas e todos estes bons momentos estão guardados no baú das recordações - tinha então 27 anos, hoje tem 35. A sua ilha, São Tomé e Príncipe, está a quilómetros de distância da rua de habitações baixas nas Galinheiras, em Lisboa, onde ocupou uma casa fria, escura, em que a cozinha e a casa de banho se fundem num mesmo cubículo. Sofre muito com o frio, está há três ou quatro meses com febre, com uma infeção que não lhe tira o sorriso da cara. Tem escaras e feridas profundas, em carne viva, ao fundo das costas e nas virilhas. Mas infelizmente não lhe doem, se assim fosse seria sinal de que tinha recuperado a sensibilidade. As enfermeiras do centro de saúde vão todos os dias fazer-lhe o penso, a alimentação é levada pela Santa Casa..Michelson é um dos mais de 200 doentes são-tomenses que Portugal acolhe anualmente para tratamentos, cirurgias e internamento ao abrigo dos protocolos de saúde com os PALOP. Mas muitos chegam cá e ficam desamparados - os cerca de 60 euros que a embaixada lhes dá, embora se queixem que nem todos os meses lhes chega às mãos, é para muitos o único dinheiro que recebem. Como acontece com Carla e Joana, que conheceremos mais à frente. O DN tentou falar com a embaixada de São Tomé em Lisboa, mas a responsável pelos assuntos sociais não se encontrava. Conhecemos os três doentes pela mão de Isabel de Santiago, embaixadora da boa vontade para causas sociais da Cáritas em São Tomé e Príncipe, professora universitária nascida na ilha, a quem a associação Men Non pediu ajuda para divulgar as dificuldades em que vivem os doentes que vieram daquele país para se tratarem em Portugal, tantas vezes abandonados à sua sorte. A Men Non trabalha em parceria com a embaixada e acompanha pontualmente, uma vez por ano, com géneros alimentícios e roupas, cerca de 100 doentes. E ainda faz visitas a internados sem família. Todos os meses chega uma média de 19 doentes de São Tomé a Portugal, o que ultrapassa os 200 estabelecidos nos acordos com o Serviço Nacional de Saúde português, explica a associação de mulheres são-tomenses..Com os subsídios muitas vezes atrasados, como referiram, estas pessoas dependem da ajuda de terceiros. E como Michelson haverá muitos, "mas têm vergonha de dar a cara e refugiam-se na sua dor", diz a Men Non. Que, neste Natal, pede que a solidariedade chegue a estas pessoas. A essa solidariedade apela igualmente Isabel de Santiago..O anjo da guarda de Michelson voltará?.Michelson recebe 264 euros do estado português, de rendimento social de inclusão por ter uma incapacidade de 87%. E, "quando a embaixada paga", recebe o dinheiro para o passe. Gasta 128 euros na medicação, tem de comprar resguardos para a cama por causa das feridas, cerca de 50 euros da água e da luz e ainda o telemóvel para falar com os filhos e para se manter ligado ao mundo. Quem vê o seu sorriso ou ouve o discurso resignado com a tragédia que lhe aconteceu, até parece que não lhe falta nada. Mas falta-lhe tudo. Falta-lhe abraçar os três filhos que há oito anos deixou em São Tomé, um deles ainda na barriga da mãe; falta-lhe até o apoio de alguma família a viver em Portugal "que apareceu no princípio"; falta-lhe o conforto básico. Como um simples edredon térmico, roupas quentes, um aquecedor, um fogão, um armário para guardar roupas, uma nova instalação elétrica no quarto para ter luz - a única iluminação que ali tem vem de um pequeno televisor, ligado a uma extensão. E é ali que passa os seus dias, por ser o único espaço minimamente habitável da pequena casa que ocupou. Michelson está muito debilitado. Como nunca esteve desde que há oito anos veio da ilha - um ano e três dias depois do acidente de mota que lhe colheu os movimentos da cintura para baixo. A partir de janeiro ficará novamente sozinho, entregue à sua sorte, porque o anjo da guarda que Deus lhe enviou há três meses está de volta a São Tomé. Mas ele tem esperança que ela regresse a Lisboa, até porque também está cá a fazer tratamentos ao abrigo do protocolo de saúde. O são-tomense já correu centros de reabilitação, hospitais e cuidados continuados, do Entrocamento a São Brás de Alportel. Há pouco tempo disseram-lhe que não reúne os requisitos para voltar para os cuidados continuados, então está a tentar os cuidados paliativos. Mas se Cidélia estivesse lá em casa ele não precisava. Ela ajuda-o em tudo e ainda lhe dá carinho e amor..Cruzaram-se um dia na embaixada, ela também doente. Cidélia foi viver com Michelson e deu-lhe os melhores dias da sua vida desde o acidente. "Faz-me muita falta, se não fosse ela já estava morto. Eu trouxe-a para aqui não foi porque não tinha onde estar, ela veio porque gostou de mim e sabia que não estava em condições de estar sozinho. Eu não conseguia sair da cama, ela ajuda-me com a higiene e aquece no microondas a comida que vem da Santa Casa.".As palavras que escolhe para descrever a importância de Cidélia na sua vida são fortes, um murro no estômago: "Não direi que é uma grande ajuda, direi mesmo que sou eu que estou dividido em duas pessoas." Mas Cidélia vai-se embora. E já não falta muito. Michelson deixa transparecer o quão triste fica com essa partida. Mas triste do que o destino que lhe calhou naquele domingo em que ia ter com a namorada - vivia com uma mulher que estava grávida e de quem já tinha outro filho, além de uma menina de outra relação, mas "andava na malandrice" e tinha outra. A poligamia é comum em São Tomé. De sábado para domingo, dormiu pela primeira vez fora de casa e depois andou o dia todo a tentar evitar a mulher. "Ela ia ralhar comigo." Já noite, decide ir ter com a namorada, que era militar. Vestiu o uniforme do exército dela - "para ninguém se meter comigo, diz - e pegou na moto. Não se lembra o que aconteceu. Só sabe que quando acordou tinha a cabeça aberta à frente e que os médicos lhe disseram que não voltaria a andar. E que foi caso de notícia na televisão e objeto de uma recomendação dos responsáveis militares para que ninguém deixasse terceiros usar a sua farda. Resignou-se ao seu destino, não se revoltou. "Fiquei normal. Acho que deus se calhar livrou-me de outras coisas piores. Não me senti revoltado, não senti nada. Estavam pessoas todos os dias a morrer ao meu lado. Um dia apareceu um amigo a chorar e mandei-o embora dali. Queria que fossem ser fortes como eu.".As palavras são ditas com a maior naturalidade, a mesma que usa para dizer que, obviamente, tem saudades de andar, de jogar à bola e de dançar na Africana, em Santo António. E também da profissão de barbeiro que, junto com as compras, vendas e hipotecas, lhe dava "uma vida boa" para os padrões de São Tomé..A mãe de Bruno, o menino surdo, só quer um trabalho.Quando Bruno tinha três meses, a mãe Carla Laranjeira notou que o seu bebé não reagia aos barulhos. Quando o menino fez um ano, os médicos portugueses do Instituto Vale Flor deram-lhe a certeza que não queria - o filho era surdo. Carla, 46 anos, chegou com o filho a Lisboa vinda de São Tomé em março e ainda está à espera que lhe seja feito o implante coclear, ou seja, a colocação de um dispositivo eletrónico que proporciona a sensação auditiva próxima ao fisiológico..Carla, tal como Joana, tem como único rendimento os 60 euros que recebe da embaixada, 50 dos quais gasta no passe para levar o filho à Casa Pia no Restelo onde está a aprender linguagem gestual. Ainda tem de comprar fraldas e as tiras para medir a insulina, porque a criança é diabética e o pão. Não sobra nada... No Hospital de Santa Maria, onde Bruno tem sido acompanhado, a assistente social tratou de que Carla recebesse um cabaz da junta de freguesia. Mas só vem "esparguete, arroz, as latas, leite, um pacote de fraldas, mas não traz peixe nem carne". Não é que Carla não agradeça a ajuda, agradece e muito, o problema é que não tem dinheiro para comprar o resto e sente-se mal por depender da irmã, que também lhes dá guarida. A mãe de Bruno - que não para de um lado para o outro, agitado com as visitas - queria mesmo era um trabalho, umas horas numa casa, para que pudesse ganhar alguma coisa. Há pouco tempo até conseguiu umas horas numa escola para lavar louça, mas, infelizmente, coincidia com os horários em que leva o filho à Casa Pia. Nem quer ouvir falar da hipótese de Bruno ficar como interno e vir a casa ao fim de semana: "Não consigo, quero que esteja ao pé de mim. Tenho muitos cuidados com a alimentação dele por ser diabético. Se ficar doente, em casa eu cumpro as regras, quando vai para escola tem baixas de insulina." Quando a 3 de março aterrou em Lisboa, Bruno foi diretamente do aeroporto para o hospital por causa da diabetes e só saiu no princípio de abril - antes de embarcar tinha estado internado três meses. O sonho de Carla era mesmo um dia ter um cantinho só para si e para os dois filhos que cá estão, Bruno e o irmão de 21 anos, que frequenta o ensino profissional em Coimbra. "Com o pai de Bruno tive briga em São Tomé para ele ajudar, mas não dá nenhum dinheiro.".Sonha também que o implante coclear traga audição e, por arrasto, a fala ao irrequieto Bruno. Mas está à espera e, afirma, no Hospital de Santa Maria, têm-lhe dito que "não há recursos". Enquanto isso desespera. Mas tem uma certeza: gostava de ficar por cá: "Gostei daqui! De princípio não, mas depois comecei a habituar. Só preciso de um sítio concentrado, calmo, e de ter um meio de vida." E provavelmente terá mesmo de ficar porque quando tiver o implante Bruno precisa de acompanhamento, de manutenção do dispositivo. Herédio de Sousa é médico no Hospital D. Estefânia e especialista em implantes cocleares. Já fez muitos, nomeadamente a crianças são-tomenses, ele que também nasceu em São Tomé, de onde veio em miúdo. Explica que esta intervenção é tanto mais eficaz quanto mais cedo for realizada. "O ideal é o implante ser colocado antes dos primeiros dois anos de vida", porque o cérebro tem mais plasticidade e, ao receber o som, sabe transformá-lo..No caso de Bruno, que tem quatro anos, adianta, já não se vai conseguir que tenha uma linguagem semelhante à de um ouvinte."Pode compreender e falar, mas a fala nunca será igual à nossa." Nestes casos, é preciso reduzir a expectativa. A janela terapêutica é curta e já se perdeu algum tempo, o som chegará ao cérebro, mas como já se perdeu alguma plasticidade não saberá como reproduzi-los a 100 por cento..Quando começar a ouvir os primeiros sons, a criança terá finalmente a noção do mundo à sua volta. Mas a adaptação nem sempre é fácil, já que, para quem nunca ouviu, o som pode deixar a pessoa apavorada, reagindo com gritos ou até com choro. Mas estará a fazer o seu caminho para a sua integração social e escolar..Joana tem o peito carregado de saudade.Quando era nova, Joana Ferreira escorregou ao entrar no autocarro, não caiu mas teve que esticar uma perna para trás e outra para a frente para se equilibrar. Ainda hoje, com 58 anos, pensa que foi esse episódio o responsável por ter vindo de São Tomé para Portugal para colocar uma prótese na anca esquerda. Irá depois pôr outra prótese no joelho direito por causa das artroses. "Lá em São Tomé é tudo casca grossa: caiu, levantou, não sentiu nada.".Chegou a Lisboa a 1 de abril, dia das mentiras, e foi morar para a casa da irmã em Rio de Mouro, onde vivem sete pessoas num pequeno apartamento de três assoalhadas, onde tudo já está muito envelhecido e a precisar de ser renovado. Mas foi por ter onde ficar que na sua ilha o dr. Lima lhe passou a junta médica. Senão não tinha vindo e continuaria a ter dificuldades em andar e trabalhar - nos últimos tempos já não dava aulas, trabalhava como adjunta da diretora da escola, em Riboque Capital, e dedicava-se às tarefas administrativas. "Estou em casa da minha irmã, tenho ajuda dela, não tenho problemas de alimentação, mas sinto-me complexada por estar dependente dela" - a irmã é atualmente a única pessoa da casa que trabalha, em limpezas onde ganha menos de 500 euros. Cada vez que Joana se desloca ao hospital gasta cerca de 20 euros em transportes público, sempre cheia de dores. Da embaixada, Joana recebe, quando recebe, os habituais 60 euros. Por isso não tem vergonha de dizer que precisavam de um sofá novo para dormirem ou "de qualquer coisa que possam dar"..Joana tem cinco filhos. O mais novo, Josemar, de 24 anos, veio como ela, como acompanhante. Vive noutra casa e agora está a trabalhar numa hamburgueria. Sempre é uma ajuda.É uma mulher de poucas palavras, mas emociona-se quando fala das saudades que carrega no peito. Da falta que lhe faz a família, dos filhos, do marido - o único com quem casou de papel passado. Há oito anos que está com Bernardino, o seu "casamento mais feliz".."Eles foram sempre das outras eu é que ia roubá-los", conta com um sorriso malandro sobre as suas relações anteriores. E assim foram nascendo os filhos, "o primeiro por acidente", quando ainda era solteira e tinha 17 anos. Na segunda relação, arranjou uma menina, "mas ele tinha necessidade de vir para Lisboa quando a filha tinha um ano e pouco e nunca mais voltou, só conheceu a menina quando ela já estava casa com dois filhos." Joana também tem saudades do tempero são-tomenses. "Aqui a comida é muito fria!" Por isso, sempre que podem, na mesa não falta calulu, banana cozida com peixe grelhado, fruta-pão assada no fogão, à falta de brasa, e a cachupa de Cabo Verde. O frio não o sente só na comida, sente-o igualmente nas pernas doentes e lamenta o quanto sofre com isso. Mas no apartamento de Rio de Mouro não há aquecedor para poupar na conta da eletricidade. A primeira cirurgia de Joana esteve marcada para julho, mas foi adiada por causa da greve dos enfermeiros. Agora recebeu um cheque-cirurgia e a esperança é que possa ser operada em janeiro. Até lá, a professora são-tomense vai passando as horas a dar carinho às duas crianças pequenas da casa, filhas da sobrinha e a fazer os seus naperons de renda com a linha comprada no chinês. As noites, que em Portugal se estendem até altas horas, ocupa-as a jogar às cartas com a família ou ver televisão. Sair não é fácil porque tem dificuldades em andar. E também não tem dinheiro para isso. Michelson, Carla e Joana deram o rosto para mostrar as dificuldades com que sobrevivem desde que deixaram o seu país para vir para Portugal à procura de tratamento. Quantos mais viverão assim?