Vidas à espera. Trabalham, descontam, mas estão ilegais

Chegaram a Portugal há dois, três, quatro anos. Esperam e desesperam por uma autorização de residência que não chega - em vez dela recebem, em muitos casos, ordem de saída do país. Eis a história de quatro vidas suspensas.
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É uma segunda-feira à tarde de agosto e no número 8 da Rua da Madalena, em Lisboa, três dezenas de pessoas esperam. Uns sentados, alguns já de pé, uns na sala de atendimento, outros já no hall de entrada. É uma babel de línguas o que se ouve por ali, mas há uma coisa que se percebe seja qual for o idioma falado - que são perguntas, interrogações o que traz ali aquelas pessoas. É uma segunda-feira de agosto e é isso que explica as 30 pessoas, que parecem muitas, mas não são - escolha-se outro mês e serão 80, 90, 100.

O 2.º andar do prédio pombalino da Rua da Madalena é o espaço da associação Solidariedade Imigrante (Solim), que ajuda os imigrantes no processo de legalização em Portugal. Há quem chegue ali depois de esperar dois, três, quatro anos pela autorização de residência que não chega, depois de muitas idas ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), em muitos casos depois de anos a descontar para a Segurança Social. Ali fazem-se muitas perguntas e há uma que sobressai sobre todas as outras - "Porquê?" Todos se reclamam do mesmo - pessoas comuns que deixaram o país de origem à procura de uma vida melhor, que trabalham, que em muitos casos sustentam as famílias que deixaram para trás, e que não compreendem os anos que se sucedem à espera da regularização no país. Esta é a história de quatro dessas pessoas.

Quatro anos e uma ordem de saída

Lurdes Tavares chegou da sua terra natal, Cabo Verde, a 25 de julho de 2013. Diz a data de cor com a certeza de quem conta os dias desde esse dia inicial. Entrou com visto legal (mas não de trabalho), que depressa expirou. Já cá tinha família, tias, um irmão, começou rapidamente a trabalhar. Mas nos dois primeiros empregos deparou-se com o mesmo problema: apesar de sucessivas promessas, o contrato de trabalho não aparecia. É "para o mês que vem", é "para o outro", e nunca chegava a ser. Deixou o primeiro emprego, deixou o segundo e em 2014, quando já tinha contrato e descontos feitos para a Segurança Social, meteu os papéis para se legalizar. Esperou, esperou, até julho de 2017. Mas não foi a legalização que chegou. Foi uma ordem de saída do país.

Lurdes tira o papel da mala, sem conseguir conter as lágrimas. Está lá escrito com todas as letras: "Deverá abandonar o território nacional no prazo de 20 dias, caso contrário incorrerá em expulsão." Tira um e outro papel, faz questão de os mostrar, como se a evidência do que lá está escrito pudesse anular a determinação do SEF. "Está aqui o contrato de trabalho, é legal, tenho este contrato há ano e meio, estão aqui os descontos para a Segurança Social, todos os meses. Eu estou a trabalhar para criar os meus filhos." Vive em Almada, sai de casa às cinco da manhã para ir trabalhar, na casa onde lhe fizeram o contrato, a que junta trabalhos esporádicos que vai arranjando para compor o orçamento. Lurdes deixou em Cabo Verde os dois filhos, agora com 14 e 10 anos. Não os vê desde 2014, perdida no mesmo labirinto que todos imigrantes à espera da regularização apontam à situação de limbo em que se veem, impedidos de sair do país sob pena de terem todo o processo anulado ou de não conseguirem voltar: "Não consigo trazê-los e não posso ir vê-los." Lurdes todos os meses manda dinheiro para as crianças. "Vivem com a minha irmã mais nova. Não têm pai, não têm avós, quem é que os sustenta?"Agora, na perspetiva de ter de deixar Portugal e regressar a Cabo Verde, não sabe o que fazer: "Vou viver de quê lá? Não há nada!" E novamente a indignação à mistura com impotência: "Já fui 12 vezes ao SEF, 12 vezes. Não consigo fazer nada." As lágrimas voltam-lhe ao rosto.

"Eu pago Segurança Social. Para mim, não há bancos, não há hospitais. Estou cá há quatro anos, a trabalhar, tenho direito a uma consulta", protesta Lurdes. "É muito complicado, tenho muita mágoa disso. Nem quero falar." Lurdes volta a arrumar os papéis rapidamente. Não sabe o que pode fazer, mas tem de fazer qualquer coisa. O tempo está a contar.

De acordo com dados do Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo, no ano de 2016 foram emitidas 5470 notificações para abandono voluntário do território nacional. No ano anterior foram 4027. O pico da última década foi em 2010, ano em que foram emitidas 7425 notificações de saída.

"Os mesmos direitos do que os outros?"

R.F. Malik vem de uma pequena cidade na província paquistanesa do Punjab - um nome frequente nas notícias, habitualmente por causa de atentados bombistas e ataques suicidas. Vem de uma pequena cidade, longe dos grandes centros urbanos, mas de onde vem, faz questão de dizer, não há sítio imune a ataques. Mas não foi isso que fez Malik deixar o Paquistão nem sequer foi uma decisão própria. Conta que a sua família tem uma antiga disputa de terras com outra família - "e no Paquistão a lei não é igual para todos" - pelo que, quando chegaram à idade adulta, o pai mandou-o, a ele e ao irmão mais velho, ir estudar para fora, como medida preventiva de futuros problemas. "Somos uma família de classe média, o meu pai gastou as economias de uma vida para irmos estudar para fora." No Paquistão, além dos pais, ficou uma irmã e um irmão com uma incapacidade.

O irmão foi para Chipre, Malik para o Reino Unido, onde esteve três anos e meio. Terminados os estudos, o irmão veio para Portugal e, algum tempo depois, seguiu-lhe as pisadas. Chegou em novembro de 2013. Agora, em 2017, continua sem obter um título de residência. Mas Malik é, apesar de tudo, um caso de sucesso. É programador informático e é nisso que trabalha desde dezembro de 2015 - depois de um restaurante, uma lavandaria, uma pizaria. "Acabamos a fazer trabalhos que nunca pensámos", acrescenta.

Mas voltemos ao início da história. Chegado a Portugal - entrou com "visa válido", que entretanto expirou, e registou-se nas Finanças - foi para Faro. Ao fim de seis meses de trabalho deu entrada com o pedido de autorização de residência, mas a carta que recebeu do SEF em 2014 não trazia esse documento - era uma ordem de saída do território nacional. Pagou uma multa, procurou uma organização de ajuda a imigrantes que apelou em seu nome à revisão da decisão. Ficou à espera, entretanto perdeu o emprego: "Foram tempos difíceis. Para se poder estar no processo [de legalização] tem de se estar empregado." E não foi só isso. No Paquistão a mãe ficou gravemente doente, mas Malik, tal como o irmão, não podia deixar o país. "Não é fácil vir do Paquistão para a Europa. O meu irmão convenceu-me a ficar. Não posso viajar, não posso ir ver a minha família. Foram tempos difíceis, durante alguns meses fui-me abaixo." A notícia que temia acabou por chegar meses mais tarde, num telefonema da irmã: "Ainda hoje tenho remorsos. Vão ficar comigo."

Entretanto mudou-se do Algarve para Lisboa. O processo demorou nove meses a acompanhá-lo na mudança. "O processo só foi transferido para Lisboa nove meses depois. E não me deram nenhuma informação, tive de ir ao Algarve para me dizerem que o processo já tinha sido transferido." Diz que no SEF sempre lhe foram dizendo "talvez nos próximos meses". "Já lá vão anos" entre esperas, pedidos de novos documentos e idas ao SEF.

A perplexidade deste paquistanês de 36 anos está-lhe estampada no rosto. "Vim para Portugal para trabalhar. Não sou delinquente, não sou um criminoso. Pedi o registo criminal no Paquistão, no Reino Unido, em Portugal, entreguei-o. Não tenho cadastro", repete uma e outra vez. "Dizem que temos os mesmos direitos que as outras pessoas, mas não é bem assim", lamenta. Malik integra o grupo de nacionalidades que atualmente mais pede ajuda à Solim - nepaleses, paquistaneses, indianos, bangladeshianos. Já foram os imigrantes de Leste, no início da década, já foram os brasileiros, já foram os chineses. Agora são os indo-asiáticos.

A mudança possível

A autorização de residência é o cartão que abre a um imigrante as portas de uma vida normal - ir a um banco e abrir uma conta, fazer um contrato em nome próprio, procurar um trabalho sem a enorme limitação de estar numa situação irregular. Quem não chegou a Portugal já com visto de trabalho tem de encontrar enquadramento legal nos artigos 88 (para trabalhadores subordinados) e 89 (para trabalhadores independentes) da chamada lei de estrangeiros, que estabelece os requisitos para a autorização de residência "para exercício da atividade profissional".

Entre as exigências estabelecidas na lei conta-se a existência de um contrato de trabalho (ou promessa de contrato, uma alteração que entrou agora em vigor) e a inscrição na Segurança Social. E um outro requisito que, diz Timóteo Macedo, presidente da associação Solidariedade Imigrante, é o grande obstáculo à legalização de boa parte destes imigrantes - a obrigatoriedade de entrada legal em território nacional. Em muitos casos, sublinha, o que acontece é que um imigrante entrou no espaço Schengen de forma legal mas já com o visto expirado à data de entrada no país. Este, diz, é o grande travão à regularização de imigrantes.

A mudança introduzida na lei há menos de um mês faz três alterações substanciais quanto às condições e requisitos de entrada. A primeira, uma das reivindicações que no ano passado levou à rua dois milhares de imigrantes, eliminou o preceito que atribuía ao SEF (ou ao ministro da tutela) a possibilidade decidir "excecionalmente" quanto aos requisitos dos pedidos de autorização. A segunda passou por incluir na lei a promessa de contrato de trabalho como condição suficiente para poder requerer autorização de residência e a terceira manteve a obrigação de entrada legal "em território nacional" mas retirou a formulação que se seguia - que "aqui permaneça legalmente".

José Manuel Pureza, deputado do Bloco de Esquerda, diz ao DN que esta foi a "alteração possível". O projeto de lei apresentado pelos bloquistas - que juntamente com uma proposta do PCP (sobre as condições de expulsão de imigrantes) está na origem da mudança na lei - apontava para a entrada legal no espaço Schengen, mas a alteração não passou pelo crivo do executivo. "Houve um a expressão, por parte do PS e do governo, de que esta formulação não seria a mais correta. Houve um acerto de posições", adianta o deputado, sublinhando que este ponto da lei "é bastante restritivo". "É uma alteração pequena. Fica aquém do que nos parecia mais adequado", conclui.

Há outro obstáculo de peso que não passa estritamente pela lei mas pela capacidade de os serviços darem resposta aos pedidos. O primeiro passo para um imigrante se legalizar passa por, cumpridos seis meses de descontos para a Segurança Social, fazer uma "manifestação de interesse". A partir daí há que esperar por um agendamento do SEF para entregar os documentos e logo aqui o processo emperra - na melhor das hipóteses, a espera é de meses. O problema agravou-se desde que o SAPA - o sistema automático de pré-agendamento através da internet - deixou de estar operacional. O DN questionou o SEF sobre a data para que este serviço seja retomado. Numa primeira resposta, o SEF apontou para final de agosto, mas ontem, 1 de setembro, o site continuava inoperacional.

Novamente questionado, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras respondeu que "o novo SAPA está a ser atualizado de acordo com as ferramentas e recursos de que o SEF dispõe, estando agora prevista a sua entrada em funcionamento na segunda semana de setembro".

"Uma quinta para cultivar"

Syed Mhafuzul Chowdhury, 38 anos, chegou a Portugal em outubro de 2014. Veio originariamente do Bangladesh, mas quando chegou a território nacional vinha de Itália, já com o visto de entrada no espaço Schengen expirado.

Conta que teve "boas indicações", disseram-lhe que Portugal é um país agradável para se viver. À partida, Syed não encontra motivos para discordar. Diz, aliás que Portugal é parecido ao seu Bangladesh - refere-se sempre ao seu país como "o meu Bangladesh". O notório afeto ao país natal não se impôs à busca de uma vida melhor: aqui "é melhor, tudo é melhor na Europa".

Syed trabalha em Beja, na apanha da uva ou noutras culturas sazonais. Há uma cuja memória lhe merece um particular lamento: "É duro trabalhar na azeitona, levantávamo-nos às quatro das manhã para começar a trabalhar às oito. Faz frio, muito frio, temos de acender fogueiras para nos aquecer." Depois era preciso esperar pelo transporte de regresso, mais "três ou quatro horas" de espera. "É muito difícil", repete Syed. Se o trabalho é difícil, o resto não parece mais fácil.

Syed dorme num contentor com mais cinco compatriotas. Problemas? "Com a comida", responde de pronto. A cozinha comunitária é um exercício difícil até entre compatriotas do Bangladesh, quanto mais com indianos e paquistaneses, que compõem a esmagadora maioria das pessoas com quem trabalha. "Há sempre alguém que não gosta." Afinal, a comida é como manter um pouco da história que ficou para trás, o paladar educado noutros sabores não se muda assim, é um pouco de casa quando ela ficou lá tão longe. Por isso há três cozinhas rudimentares "para os do Bangladesh, para os da Índia, para os do Paquistão". Syed fala apenas rudimentos de português e tem uma explicação para isso: "Pouco falo com portugueses. Onde trabalho são quase todo estrangeiros."

Casado, pai de um rapaz de 13 anos e de uma menina de 9, mata as saudades através do Skype. Diz que o seu sonho é "trazer a família" para Portugal e ter uma quinta para cultivar. É um "sonho difícil", mas não tão difícil como seria conseguir o mesmo no Bangladesh. Mas é um sonho a prazo. É cada mais difícil resistir aos pedidos dos filhos que lhe pedem para voltar: "Dizem-me "não queremos nada, não interessa o dinheiro, queremos que voltes"." Syed diz que se não conseguir os papéis neste ano vai-se embora.

Syed é muçulmano, reage com um franzir de sobrolho à pergunta sobre se já se sentiu discriminado em Portugal. "Não. Porquê? Somos todos criação de Deus." "A minha religião é pacífica", acrescenta.

Nunca se sentiu discriminado, repete. "Os portugueses respeitam muito os outros. Como no meu Bangladesh", diz, sorridente. E novamente com um ar sério: "O que é que é diferente? A minha roupa é diferente, mas qualquer pessoa se pode vestir como eu. A barba? Qualquer pessoa pode ter barba."

Nem reagrupamento nem legalização

Soares da Costa vem da Guiné-Bissau, empurrado pelas dificuldades económicas que tinha na terra natal: "Ganha-se muito pouco, não dá para esticar." Tinha cá um tio, veio na convicção de podia legalizar-se e pedir o reagrupamento familiar - na Guiné ficaram três filhas, hoje com 13, 11 e 9 anos - a mais nova ainda não tinha nascido quando deixou a Guiné, nunca a viu presencialmente. "Andam no 3.º, no 7.º e no 8.º anos", acrescenta, com um evidente orgulho: "Queria trazê-las para cá, assim não posso fazer nada."

Soares da Costa não quer falar dos primeiros anos que passou em Portugal - fazendo as contas à idade da filha terá sido em 2009. Diz que só em 2015 conseguiu um contrato de trabalho que lhe permitiu avançar para o processo de legalização. Trabalha nas Caldas da Rainha, "na madeira", diz, antes de acrescentar que a cada três meses manda "300 euros" para as meninas, na Guiné. "Já fui ao SEF três ou quatro vezes, já paguei 250 euros", lamenta.

Números divergem

É indeterminado o número de estrangeiros indocumentados que residem e trabalham em Portugal. Timóteo Macedo fala em valores na casa dos 30 mil. José Manuel Pureza sublinha que não se sabe ao certo, mas que estaremos a falar em "vários milhares, na casa das dezenas de milhares" de pessoas. Em março deste ano, numa audição na Assembleia da República, a ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, apontou para o número de 3500 processos de imigrantes legais que pediram autorização de residência. Já ao DN, o ministério explicou então que estavam fora deste balanço os processos já registados, mas ainda sem tratamento por parte do SEF ou os que não avançaram por falta, por exemplo, do requisito de entrada legal no país.

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